Thadeu Brandão – Hannah Arendt e a Violência

Hannah Arendt contesta uma tese aceita em sua época (anos 1960), de que poder e violência são fenômenos equivalentes , assim como a idéia que o fundamento do poder seja a violência. Distinguindo poder de violência e vice-versa, mostrou que ambos se relacionam entre si nas situações políticas concretas. Não há poder sem violência (relacionalmente, é claro).

A filósofa aponta que o desenvolvimento tecnológico dos implementos da violência chegou a um ponto em que nenhum objetivo político pode corresponder ao seu potencial de destruição ou mesmo, justificar seu uso em um conflito. A guerra perdeu seu fascínio. A referência à capacidade humana de se autodestruir com suas armas nucleares é nítida. Isso aponta, na visão de Arendt, a noção de que a violência sempre necessita de “implementos”, afinal, a “substância da ação violenta é regida pela categoria meio-fim”. A violência, em geral, é meio e nunca fim. (2010, p. 18.).

Vivenciado a Guerra Fria e após a tragédia da II Guerra Mundial, do Holocausto e do terror nazista, Arendt afirma que “a paz é a continuação da guerra por outros meios – é o desenvolvimento efetivo nas técnicas de combate” (2010, p. 24). Daí que, a guerra contínua, incessante, caracterizaria o mundo moderno. Ao menos, é claro, naquele contexto vivido pela filósofa. A Guerra Fria assim se caracterizava devido à posse de meios de destruição mútua que possuíam as superpotências, Estados Unidos e União Soviética, em sua disputa por áreas de influência. Com o fim da Guerra Fria, as armas atômicas ainda subsistem. O que mudou?

No que se refere à idéia de revolução, na medida em que a violência se tornou um instrumento dúbio e incerto nas relações internacionais, uma guerra pode significar a destruição total, mais a violência tornou-se um apelo e uma reputação nas questões domésticas. Era um ponto recorrente nos revolucionários anos 1960. Mas a incerteza tornou-se uma sensação global. Isso porque, “a proliferação aparentemente irresistível de técnicas e máquinas, (…), ameaça a existência de nações inteiras e, presumivelmente, de toda a humanidade” (ARENDT, 2010, p. 33). Hoje apontaríamos um ambiente inteiro de incerteza com a degradação ambiental e a incerteza dela decorrente.

“Os processos de desintegração que se tornaram tão evidentes nos anos recentes – o declínio dos serviços públicos: escolas, polícia, correio, coleta de lixo, transporte, etc.; a taxa de mortalidade nas estradas e os problemas de tráfego nas cidades; a poluição do ar e da água – são os resultados automáticos das necessidades das sociedades de massa que se tornaram incontroláveis” (ARENDT, 2010, 104-105).

Ligada a uma lógica de meios-fins, a violência liga-se à força enquanto técnicas de controle social e persuasão. Como bem resumiu Arendt: “A forma extrema de poder é Todos contra Um; a forma extrema da violência é Um contra Todos. E essa última nunca é possível sem instrumentos” (2010, p. 58).

Para Hannah Arendt, pensar a violência é dar conta de algumas categorias que a constituem ou com ela se relacionam. Primeiramente temos o poder. Poder é uma habilidade humana para agir em concerto. Pertence a um grupo enquanto este permanece unido. Não é algo individual, mas coletivo. Ligado ao poder existe o vigor. Este “é a propriedade inerente a um objeto ou pessoa e pertence ao seu caráter”. Outro elemento é a força: ligada à violência por indicar energias liberadas, físicas ou sociais. Já a autoridade pode ser investida em pessoas ou em cargos. Caracteriza-se pelo “reconhecimento inquestionável daqueles a quem se pede que obedeçam; nem a coerção nem a persuasão são necessárias” (p. 61-62).

Isto posto, a violência se distinguiria de todos esses outros fenômenos pela sua instrumentalidade. Aproxima-se do vigor exatamente por ser uma ferramenta que visa aumentá-lo. Mas, o mais comum é a aproximação entre a violência e o poder, mas não significa que sejam a mesma coisa. Se poder e autoridade, numa perspectiva weberiana, se entrelaçam, a autoridade pode usar da violência como instrumento, mas apenas quando a estrutura de poder está intacta.

“Onde os comandos não são mais obedecidos, os meios da violência são inúteis e a questão dessa obediência não é decidida pela relação de mando e obediência, mas pela opinião e, por certo, pelo número daqueles que a compartilham. Tudo depende do poder por trás da violência” (ARENDT, 2010, p. 65-66).

Daí porque, segundo Arendt, a ruptura dramática e súbita do poder que anuncia as revoluções revelam quanto a desobediência civil nada mais é do que a externalização do apoio e do consentimento. Até porque, nunca houve na história, governo apoiado, única e exclusivamente, nos meios da violência. Mesmo nos totalitarismos baseava-se em uma base de poder (como a polícia secreta e sua rede de informantes).

Violência não é algo bestial ou irracional. Deve ser pensada como uma categoria social. O homem, mesmo submetido a condições extremas de desumanização, como campos de concentração nazistas ou gulags, não se torna semelhante a animais. O uso da violência, tal qual realizado, é feito humano, sempre.

De todos os niveladores humanos a morte é o mais potente. Arendt a considera a experiência mais antipolítica que existe. Isso porque, ao morrermos deixamos de lado a experiência com os outros, condições de toda política. A morte é “um extremo de solidão e impotência” (2010, p. 87).

O uso da violência, para ser eficiente, necessita de organizações e de grupos. Homens sós não possuem poder suficiente para usar da  violência com algum sucesso. Por isso que “a violência funciona como o último recurso do poder contra criminosos ou rebeldes”, isto é, contra indivíduos que se recusam a “ser subjugados pelo consenso da maioria” (ARENDT, 2010, p. 68).

Assim, é o poder a essência da autoridade e do governo, e não a violência. Esta, em sua natureza instrumental depende da orientação e da justificação pela finalidade que se almeja. O poder, como lembrou Max Weber, necessita apenas de legitimidade. A violência nos lembra Arendt (2010, p. 69), “pode até ser justificável, mas nunca será legítima”. Governos pelo seu monopólio da violência utilizam esta para dominar. Mas como instrumento (meio), nunca como fim.

Daí que,

“a violência não depende de números ou de opiniões, mas de implementos, e, (…) os implementos da violência, como todas as ferramentas, amplificam e multiplicam o vigor humano. Aqueles que se opõem à violência com o mero poder rapidamente descobrirão que não são confrontados por homens, mas pelos artefatos humanos cuja desumanidade e eficácia destrutiva aumentam na proporção da distância que separa os oponentes” (ARENDT, 2010, p. 70).

Arendt argumenta que a violência pode destruir o poder, pois de uma arma apontada pode surgir a ordem mais enérgica e a mais perfeita obediência. O que não surge daí é o poder. Isto porque poder e violência são opostos. Onde um domina totalmente o outro se ausenta. A violência surge quando o poder está em risco. Deixada livre, leva ao desparecimento do poder. Quanto mais violência menos poder.

No Brasil hoje, aposta-se exatamente no oposto.

Bibliografia

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. 2ª Ed. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.