Sol de dois canos

Chega de notas por hoje, embora não tenha escrito nenhuma. Quero dizer com essa frase mal-amanhada que a crônica às vezes chuta o pau da barraca e se impõe aos assuntos da última hora, não mais tão urgentes assim. Afinal de contas, o furo agoniza há anos e as notícias estão aí ao alcance de todos na versão preferida de cada um, verdadeiras e mentirosas, como produtos expostos nas antigas bodegas do Rabo da Gata que vendiam de freio para gato a suspensório para cobra.

Pois é. Logo hoje quando pretendia tomar de volta o Neruda e “escrever os versos mais tristes”. Todo mundo se sente péssimo quando em vez. Eu, na maioria das épocas, porque o tormento é da natureza dos notívagos. Talvez a origem esteja na insônia – faz mal dormir apenas quatro horas por noite, segundo dizem – somada à escassez do vil metal, tempero infalível das madrugadas em claro. Se pedissem, descrever-me-ia em plena mesóclise como qualquer beltrano entre Hardy e Uruca.

Para piorar, as palavras sempre me fustigam, essas vadias desalmadas que furtam o juízo, as ideias e os bons modos de quem as deseja. Seduzem e somem sem aviso, sem bilhete. Saem para comprar cigarro e viram fumaça, ganham o mundo. E o bardo, antes prosa, desespera-se, caga poemas a torto e a direito, encarcera versos livres em muquifos de 6×10, espanca-os na retórica vadia dos bares, arreganha sílaba por sílaba em busca de justificativas, de algum paradeiro. Mas nada!

Procuro, fuço, bulo, reviro lençóis, desarrumo as gavetas, ligo e desligo a TV. Nada de paz à vista, nada além de rugas e olheiras espelhadas no fundo da xícara de uísque que ainda nem servi. Contudo, entretanto, todavia, replicando o Cântico Negro de José Régio – ao menos restam lembranças das leituras da juventude – e rogo, encarecidamente, “… que ninguém me dê piedosas intenções!/ Ninguém me peça definições! / Ninguém me diga: ‘vem por aqui’!”. Respondo mal aos invasores.

E esse calor, hem? Chega os olhos ardem e o suor escorre na calha das costas. Será o tal “sol de dois canos, de tiro repetido” de João Cabral de Melo Neto ou a andropausa? Felizmente, as veredas da crônica são infinitas. Então, vou ler a entrevista de Marcos Ferreira e ouvir Tom Jobim. Depois, telefonar para um monte de gente. Se nada resolver, brigo com Lázaro Amaro sobre a vírgula na inversão da ordem direta da frase, faço uma live com Túlio Ratto… e tudo vai terminar bem.

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