Os condomínios de casas ou apartamentos em que se entra através de portarias e algumas formalidades, cercados por muros altos e abrigando todo tipo de equipamentos, de academias a piscinas, além de play ground e espaços gourmet, estão acabando com a ideia do bairro e a identidade que tínhamos com as pessoas, mercearias, padarias, colégios, igrejas e toda espécie de equipamentos necessários à vida comunitária.
Gutenberg Costa, pesquisador, sabe bem do que falo. Apesar de hoje morar em São Saruê, margem da Lagoa de Papary, onde cuida dos seus livros e discos, não perde jamais seus vínculos com o bairro do Alecrim. Nem com a feira.
Quais os elementos fundamentais da identidade de um bairro? A igreja, com certeza, é uma presença marcante, bem o como o vigário e até as beatas filhas de Maria. Ali as famílias se encontravam aos domingos e nas festas, batizados, crismas, casamentos, missa do galo. E o padre, confessando a todos, sabia dos dramas e alegrias de todo o seu rebanho. (Vi, em são José do Ribamar, Maranhão, dezenas de carros estacionados em frente à igreja, todos com o capô aberto. Lá pras tantas o sacerdote aparecia junto com o sacristão que carregava um balde cheio de água benta. E ele se punha a benzer os motores daqueles carros todos usando uma espécie de escova para a aspersão).
O boteco também era essencial. Ali se reuniam os biriteiros habituais e os de presença eventual. Alguém sempre trazia um pratinho com parte do almoço para tira-gosto. Também havia o jogo de palitinhos, as discussões sobre temas que ninguém no fundo entendia bem: política, economia, religião, futebol. O assunto principal, claro, era a vida alheia, o verdadeiro esporte nacional.
O campinho de futebol é outro elemento marcante. O nosso se chamava Pacaembu. Quem batizou, não sei, mas foi uma atroz ironia, pois era minúsculo, de terra e ainda por cima ocupava uma parte de rua, o que nos fazia parar a cada instante para permitir a passagem de carros. Além disso, todo bairro que se preza tem o seu time de futebol formado por maravilhosos pernas-de-pau. Os nomes dos times são expressivos. Duro-na-queda, Viracopos, Vira-e-mexe. Arranjam o uniforme e bola com algum vereador e mandam ver. A sede do time é no boteco e as reuniões são pretexto para algumas biritas. E o craque tem sempre um apelido criativo: Bilula, Baíca, Toré, Carlos Calango, Manga-Rosa. Nunca ganham nada, mas bebememoram a valer antes e depois dos jogos. Às vezes até durante. Na segunda-feira se contavam as baixas. –Cadê Zé Boquinha? – Quebrou um dedo e tá em casa.
Antes os bairros também organizavam festas e quadrilhas de São João. O Arraial da Esmeralda, em Potilândia, fez fama. O das Quatro Bocas, nas Quintas, também. No Alecrim a festa de São Sebastião era a principal do bairro. A comemoração dos Santos Reis, no bairro de mesmo nome, tem tradição de décadas, com seus barquinhos adornados de papel colorido contendo farinha de castanha.
São naus de papel de seda
Carregadas de castanhas
Sonhando terras distantes
De Portugal e de Espanha.
Qual bairro não tinha a sua curriola? Tipo a turma da zona norte nas revistas de Bolinha? Era um grupo de meninos que se juntavam, não para se divertir, mas para acabar com a diversão dos outros. Esses grupos arruaceiros eram temidos. Alguns tinham nomes, como a turma da Tabica, ali no bairro de Petrópolis. Era comum, no encontro de turmas de bairros diferentes, a coisa degenerar em briga feia, aos socos, paus e pedras. (Os caras simulavam um começo de briga entre eles: “- Solte o pedaço de pau se for homem!” Um besta que havia parado pra ver a briga se oferecia para segurar a “arma” e quando pegava o pau descobria a mão suja de merda).
E ai do atrevido que viesse se meter a besta com alguma menina do bairro. Era convidado, “gentilmente”, a desaparecer das redondezas.
Os bairros tinham seus cinemas. O Cine Poty vive na minha memória. Não que não frequentasse os outros, mas no Poty eu me sentia em casa. O São Luís ficava no Alecrim. Nas Rocas, havia o Panorama. Na cidade Alta o Cine Rex, especial para negociar revistas. E o Nordeste, único com ar-condicionado, um luxo. A meninada se encontrava nos cinemas, principalmente quando o filme era de Maciste ou de Ringo. A gente conhecia do bilheteiro ao porteiro. O troco era suficiente para comprar dois cigarros Elite, fumados em meio à tosse, fazendo com nos sentíssemos adultos.
Mas os bairros eram, principalmente, os tipos humanos. Havia de tudo. O mentiroso. O contador de vantagens. O bebum. O valente. O irmão da menina bonita. O corno conhecido de todos da rua. A gostosa. O barbeiro. A barbearia da minha rua era na esquina. Chico Barbeiro passava as noites lá dentro. Pra conseguir dormir ele sempre lambuzava o batente da porta com algum produto imundo, senão os caras sentavam ali para conversar. Até o carteiro Mazinho era familiar e chamava com a voz fanhosa: “- Correeeeio!” O padeiro entregando pão no balaio. O verdureiro. Arroz doce, cuscuz, algodão doce, cocadas, tapiocas, cavaco chinês, doce de coco, tudo era vendido nas portas por caras conhecidas. O pessoal de hoje não sabe o que era o garrafeiro que passava comprando, como ele anunciava: “- Garrafeeeeirô! Garrafa, meia garrafa…” E seguia enumerando os itens que interessavam.
Eita, cliquei fundo os arquivos da memória. Dia desses, visitei o bairro em que morei. Não há quase mais nada, exceto algumas velhas casas transformadas em pontos comerciais. Caminhei um pouco por aquelas ruas, em busca de rostos e restos de tempos que não voltam mais.
NATAL/RN