“Quem Ama Perdoa”

Cláudio Emerenciano [ Professor da UFRN]

As perplexidades e contradições do mundo atual desfazem sonhos e esperanças, que prenunciavam o novo século e o novo milênio? Será que estamos num daqueles retrocessos que Arnold Toynbee, em seu notável “Um estudo da História”, chamou de penosa reversão de expectativas? Será que, mais uma vez, na vida dos povos, a violência sobrepuja a paz, o ódio dilacera o amor e os egoísmos sufocam a partilha? Fustigam a fraternidade e a solidariedade? De modo algum. Apesar de tudo, anonimamente, em todas as culturas, nações e circunstâncias, há heróis que, cotidiana, rotineira e incessantemente, são artífices do bem. Exercitam o amor ao próximo como exclusiva forma de viver. Universal e incondicionalmente. Gandhi, João XXIII, Madre Teresa de Calcutá, João Paulo II e Santa Dulce dos Pobres, por seu testemunho de vida, aproximaram os homens da essência da obra e do sentido da Criação. A isso chamamos de revelação universal sem fim de amor. A busca da Luz com amor, caridade e simplicidade.
A humildade, o amor e a fé são intemporais. Desde o patriarca Abraão até aos nossos dias. Akennaton, no Egito, quase dois mil anos antes do Cristo, teve percepção e fé de que o universo é obra de um único Deus e do seu amor. E como tantos e tantos depois dele, imolou-se por sua transcendental concepção do mundo e da vida. O egiptólogo e romancista Christian Jacq, em sua monumental obra, dedicou três títulos à vida, à conjuntura política e às características socioculturais daqueles tempos. Tão distantes, mas atuais por sua substância.
Reverencio um homem simples, rústico, humilde, muitas vezes arrebatado, frágil e contraditório como qualquer um. Durante algum tempo, falava e lia precariamente sua própria língua (dialeto). Inseguro e, em certas circunstâncias, subjugado pelo medo. É um dos meus grandes heróis: São Pedro, o Apóstolo. Nele se conjugam quase todas as características da condição humana, inclusive contradições, insegurança e reações emocionais. Mas sobretudo e principalmente a faculdade de arrepender-se, pedir perdão e ser clemente com os semelhantes.  Em Roma, uma das minhas primeiras visitas é à Basílica “San Pietro in Vincoli”. Seu acesso é facílimo pela Avenida Cavour. Em frente ao Hotel Palatino, onde costumo ficar. Há uma escadaria, que nos leva diretamente à sua porta lateral. Pedro, após ser preso no Circo Máximo, onde desafiou Nero em defesa de cristãos, prestes a serem devorados pelas feras. Foi conduzido à Prisão Marmetina. Lá se encontrava o Apóstolo Paulo. Mas não se reencontraram. Duas correntes o prenderam. Após sua crucificação no monte Vaticano (de cabeça para baixo), dois escravos, libertos e convertidos, levaram as correntes para as catacumbas de S. Calisto. Posteriormente foram transferidas para Constantinopla (Bizâncio). Voltaram bem mais tarde para Roma. Nessa Basílica se encontra, também, o “Moisés” de Miguel Ângelo que, em termos de escultura, juntamente com a “Piettá” e o “Davi”, são monumentais obras-primas, geniais, insuperáveis e inimitáveis. Amálgama entre a cultura e a fé. André Malraux, em “As vozes do silêncio”, vaticinou a infinitude desse legado artístico-cultural, que incorpora a cúpula da Basílica de São Pedro com seus afrescos e os da Capela Sistina.
São Pedro era dez anos mais velho do que Jesus. O Anno Domini (ano de nascimento de Jesus) teria ocorrido três anos antes do 1º ano do Calendário Gregoriano. Desse modo, Jesus teria sido crucificado no ano 30 e não no ano 33 da nossa era. S. Pedro foi crucificado de cabeça para baixo no ano 67 d.C., provavelmente com 79 anos. Não há descrições do seu martírio. Mas cristãos gregos, escravos libertos, documentaram suas palavras proféticas no Circo Máximo. Denunciou Nero e confortou os mártires: “Paz aos mártires. Paz a eles. Leve seus filhos, Senhor. Entorpeça suas feridas. Suavize a dor. Dê-lhes força, Senhor. Abençoados sejam vós, filhos que morrem em nome de Jesus. Saibam que, ainda hoje, estarão com Ele no paraíso. Aqui, onde Nero reina hoje, Cristo reinará eternamente”. Os cristãos, lançados às feras, enfrentavam a morte cantando uma oração, que varreu os tempos: “Cristo Vive, Cristo Reina, Cristo vence, Cristo, Cristo, Cristo é nosso Rei…”. Esses atos de fé, nos primórdios do Cristianismo, e uma das epístolas de São Paulo, inspiraram Daniel-Rops, um dos grandes teólogos do século XX, em livro monumental: “Morte, onde está sua vitória?” Naqueles tempos os cristãos legaram à posteridade o testemunho vivo de fé, esperança e caridade. O teólogo Hans Küng, em seu livro “Ser Cristão”, pressagiou uma antevisão dos tempos atuais, incertos, violentos e inseguros. Exortou a cristandade a enfrentar todos os desafios, inclusive o medo e o terror, com o amálgama universal: fé e esperança.
O pescador da Galiléia percorrera quase todo o mundo antigo, antes de chegar em Roma. Convivera com S. Paulo nas comunidades cristãs da Grécia e em Jerusalém. Fora ele quem, pacientemente, durante um mês, prestara a S. Paulo e a S. Lucas muitas das informações que constam do Evangelho segundo Lucas e dos Atos dos Apóstolos. Aquele homem simples, curtido por sua vida apostolar, que negara o Cristo por três vezes, conheceu a sublimação de sua fé. Testemunhou-a até o último instante de sua vida. Amando aos homens e desafiando as injustiças do mundo. Sempre com humildade, movido pelo Espírito Santo desde o Pentecostes.
Por isso, na Basílica de S. Pedro, diante de sua imagem em bronze, não contenho minha emoção. Contemplo-a e reflito em meu coração sobre a vida daquele pescador que, como profetizara o Cristo, converteu-se sublimemente em pescador de criaturas humanas. Desafiou seus próprios medos com fé, esperança, caridade, humildade e, essencialmente, amor. Desde o Pentecostes, repito (Jerusalém), o Divino Espírito Santo o inspirou e ele nada temeu.
O encontro entre São Francisco de Assis e o Papa Inocêncio III, na Basílica de São João de Latrão(?), ou na Basílica Santa Cruz em Jerusalém (construída no século IV por Santa Helena, mãe de Constantino), assinalou o retorno da Igreja aos tempos primitivos. Testificou humildade e identidade irrestritas com os pobres. O Papa Francisco reviveu a humildade de São Pedro e a do “poverello” (pobrezinho) de Assis. E advertiu: “Quem ama perdoa”. Para céticos a humanidade desliza em “fio da navalha”. A essência da humanidade é espiritual. Consagra a sublime mistura do corpo com o espírito. Síntese do livro “O apóstolo São Pedro” de William Thomas Walsh.
Publicado na Tribuna do Norte

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