PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CXCII)

Clauder Arcanjo*

 

Colóquio com Eduardo Frieiro

Foto: “Ilusão”, de Marcão Melo.

Na realidade, a arte nasce quase sempre duma dissonância entre o artista e a vida.

Torto, não habituado aos pragmatismos. O escritor, quase sempre, sofre com as ditas profissões manuais. Com um formão, lembra-se de um verso para um carpinteiro. Com um pincel, labora uma estrofe para um pintor de escol. A palavra é seu instrumento, e exige dele toda entrega. Das mãos, das pernas, do corpo inteiro. E, por que não?, de todo o espírito.

Todo artista, todo poeta, todo sonhador é um falhado; falhado diante da vida prática, bem entendido. Falhado, sim; mas nem por isso trocaria qualquer deles a sua existência às vezes dolorosa de inadaptado pela do homem prático mais contente de si mesmo.

 

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São muitos os que escrevem e poucos os verdadeiros escritores. Escrever como toda gente, é fácil; escrever bem, é extremamente raro e difícil.

Folheou o jornal do domingo. No primeiro caderno, um texto tratando o português a pauladas. No segundo caderno, uma crônica de um “ilustre intelectual” ferindo o primado da lógica, e desrespeitando o regramento da mínima moralia literária.

Ao final, rasgou o jornal por inteiro, com vontade de jogá-lo, picadinho, aos porcos. Mas, conteve-se: em respeito à pocilga.

 

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A arte de escrever tem regras de asseio e polidez que não devemos infringir se não queremos passar por mal-educados.

A arte da escrita é afeita à moral, ao bem viver; é tão importante quanto as noções primárias de asseio e de civilidade. A todo mau escritor se deveria oferecer, antes de tudo, um curso intensivo de etiqueta literária. Alguns rabiscam de forma tão grosseira e chula que, ao lê-los, se tem a sensação que cuspiram no papel e, por conseguinte, no rosto do leitor.

 

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Uma tradição que os moços não deveriam perder é esta: a tradição dos trabalhos aturados, do polir incessante, sem o qual poucas obras-primas teriam existido.

— Mas assim fica por demais cansativo! — protestou um pretenso escritor da província.

Companheiro Acácio, que até então se mantivera calado, desabafou:

— Se não te cansares lapidando a tua obra, ó bendito, tu extenuarás a paciência dos teus leitores.

 

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O escritor deve apurar a forma, aperfeiçoar a obra, com insistência, com tenacidade. O primeiro jacto, por mais viva e fecunda que seja a inspiração, deixa sempre que desejar. Os textos aparentemente mais frescos e espontâneos costumam ser o resultado de pacientes e sábias sobreposições.

— Quantas vezes releste e refizeste este teu texto? — indagou Carlos Meireles.

— Ah, esse saiu-me já pronto. De um jorro de inspiração só.

— Então, volta e cuida de relê-lo; como se estivesse a escrever a última carta tua aos Céus. E saibas logo: Deus estará sempre ao lado dos humildes — advertiu-o.

A difícil simplicidade: eis o segredo de toda arte.

 

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O fervor dos moços é uma virtude incomparável, mas de pouco valor se não se junta ao gosto, que não é fruto temporão.

Depois de ler estes conselhos de Eduardo Frieiro, o jovem aprendiz fechou o seu caderno de “notas geniais”, e foi ler mais.

 

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Quem se ilude com a vida literária perde o compasso da literatura.

 

Obs.: textos em itálico extraídos da obra A ilusão literária, de Eduardo Frieiro, 2ª edição (Belo Horizonte: Editora Garnier, 2020).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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