Pílulas para o Silêncio (PARTE CLXXXIV)

Clauder Arcanjo*

 

(Pintura Madona Sistina, de Rafael Sânzio)

 

Diário da Quarentena

 

Para a escritora Kalliane Amorim

 

Acordou vestida de oração e silêncio. Caminhou com seus passos lívidos sobre o chão frio da casa. Ao chegar à cozinha, lembrou-se do cheiro do café matinal. Antes de prepará-lo.

Ao se aproximar da cesta de frutas, o cheiro forte dos cajus invadiu-lhe as narinas afiladas, sem ela sequer sabê-los presentes.

Quando se sentou na varanda, as margaridas — vermelhas como nunca no pequeno jardim — sopraram seu perfume na tez pálida, ainda banhada de esperança.

 

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— Entre a vida e a poesia, ficas com qual, poetisa?

— Não posso fazer tal escolha, amigo!

— Vou insistir, minha cara! Entre a vida e a poesia, qual seria a tua escolha?

— A poesia da vida.

Em seguida, ela pôs-se a rabiscar. Em letras cursivas, suspeito, um poema nascia.

Quando eu me vi sozinho, levantei-me e fui para junto da escrivaninha. Sobre ela…

Li, chorei e saí.

Por entre a galharia e os espinhos, o chilreio de um pássaro estranho. E quanto mais eu o ouvia, mais me lembrava da página da poetisa; enquanto um soluço dorido garroteava a minha voz.

 

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Ao nascer, a primavera se antecipou. “Pequena flor”, saudavam seus genitores.

Na escola, o carinho das professoras. Ao soletrar as primeiras palavras, um timbre melífluo, por demais singular. “Pequena princesa”, abraçavam-na as mestras.

Na faculdade, os versos primeiros. De uma candura sem par. “Nasce mais uma Cecília!”, vibravam seus leitores.

Nos dias de agora, o tempo assombra seu corpo: cada músculo, cada passo, cada pensamento… Nos lábios, o riso; como se em sublime eucaristia com a vida.

 

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Não há tempo para lamentos. O tempo quebrou as vidraças, invadiu nossos despojos, assanhou nosso degredo. Enfim, expulsou-nos do esconderijo dos dias, e nos pôs no meio da luta.

Não há tempo para construirmos — ou por optarmos por — um novo tempo. O tempo é este, o resto do agora: túrgido, maculado, desgrenhado e aflito.

Esta noite, em meio à dor que insiste em te sucumbires, haveremos de cantar contigo, brava companheira. Há de ser uma canção de troça e sorriso contra a escuridão. Mergulharemos no vazio profundo da noite e, dele, extrairemos o botão de um outro dia. Pálido e tímido, mas nosso. Nosso como a tua coragem-canção.

 

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— Meu diário sofre com a quarentena — ele protestava.

— Mas tu já vivias recluso, meu Machado!

— É diferente, Raimunda. Você bem sabe: quando se tira à força alguma coisa do cardápio, a fome por isso só cresce.

— Vou te dar, então, um chá do meu sumiço.

— Você vai querer o meu fim, Raimunda? Quarentena sem sexo, para mim, é morte certa.

E amaram-se, noite adentro, com uma fome de canibais.

 

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Entrou na noite, e a noite invadiu-o com despudor. Ela rasgou sua cerca de proteção, pisoteou seu milharal de alegria e plantou sua bandeira no cume do seu juízo.

Na madrugada, pé ante pé, deixou seu próprio latifúndio de certezas, mudando-se de vez para o charco das suas tristezas. Lá, acreditava, viveria um ano.

Então, lá fora, uma voz lhe anunciou:

— Um ano?!… Melhor dirias: setenta vezes sete.

 

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— Vou fugir. Não há mais nada a perder.

— Fugir de quem, meu bem?

— De mim mesmo.

— E por qual motivo, benzinho?

Ele olhou para as mãos, fitou a própria imagem refletida no espelho da sala, e desabafou:

— Não suporto a companhia desse sujeitinho. Não me tem nenhum segredo, porém não sabia o quanto ele era desenxabido.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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