PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXXVI) – Clauder Arcanjo

Confundindo a linguagem

Foto: Ilha de aço, de Marcelo Visentin.

Foi dali que o Senhor os dispersou daquele lugar pela face de toda a Terra, e cessaram a construção da cidade. Por isso deram-lhe o nome de Babel, porque ali o Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes da Terra, e dali os dispersou sofre a face de toda a Terra.

(Bíblia, em Gênesis 11, 8-9)

 

Balal Verbênio adorava confundir os outros com o seu discurso recheado de metáforas, apostos, paráfrases e metonímias a perder de vista. Explicando melhor, a confundir os ouvintes.

— Esse filho de uma égua nasceu no estrangeiro? — indagou Simplício dos Anjos ao ouvi-lo pela primeira vez.

Eustáquio, boquiaberto com o cipoal daquele palavreado indecifrável, confidenciou-lhe:

— Não, compadre Simplício, ele nasceu no Retiro. Respeite o homem, ele merece todo o nosso apreço. E, além do mais, Balal acabou de ser nomeado, pelo senhor prefeito, nosso orador oficial.

Simplício coçou os bagos e arrematou:

— Ele merece mesmo é uma boa surra; isso, sim! Ficaria logo curado dessa peste de conversador arrevesado!

Nesse momento Balal floreou seu discurso com uma expressão em latim, copiada de um velho tomo da casa paroquial:

Si hortum in bibliotheca habes deerit nihil.

 

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Quando a palavra abunda, o senso se prejudica. Só os sábios defendem os minimalistas.

 

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Corsino Babilônio subiu na cumeeira da casa e, de lá, iniciou a prática da verborragia. Dia e noite, noite e dia.

Dizem que só se calou na madrugada passada porque foi atingido na boca por uma pedrada de Bastião, o surdo-mudo de Licânia.

E a pequena cidade, a partir de então, dormiu em paz.

 

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Cícero notabilizou-se por atarantar os outros com a prática da “enxurrada de citações”.

Certa noite, ao presenciar um entrevero entre o velho Adamastor e o filho Clerêncio, Cícero intrometeu-se, defendendo o jovem:

— Segundo o Código de Hamurábi, seu Clerêncio, todo herdeiro tem o direito ao contraditório…

O velho Adamastor cortou-lhe a fala, anunciando:

— Segundo o Código do Cinturão e da Dor, meu amigo, quem come do meu pirão vive segundo a Lei do Adamastor.

E encerrou o debate com o cinturão de couro cru em punho.

 

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Num passado nem tão distante, Licânia prezava mais os oradores do que os semeadores.

Durante uma seca forte, o povo todo ficou entretido com os discursos do Vasconilo a falar na Praça do Poeta do prenúncio de um bom inverno no ano seguinte.

Registram os historiadores que todos só não morreram de fome porque Ana Excelsa e Lourenço alimentavam, na calada da noite, os fiéis ouvintes:

— Comam, temos que ter forças para esperar a próxima invernada — convenciam-nos.

 

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Galício Petrarca tornou-se poeta e passou a apresentar seus poemas na feira de domingo.

Galício confiava tanto no seu estro, assim como na potência do seu lirismo, que se autointitulou “O Patativa de Licânia”. Só desistiu do ofício de versejador quando assistiu a uma contenda entre dois repentistas do povo:

— Assim fica difícil! — concluiu, abandonando a musa por definitivo.

 

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Quem fala pelos cotovelos é porque não tem pela verdade o mais leal apego.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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