PÍLULAS PARA O SILÊNCIO – (PARTE CCXXII)

Foto: “Igreja”, de Marcelo Visentin.

Cansaço sem valia

 

O que há em mim é sobretudo cansaço

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.

(Álvaro de Campos)

 

Anoitecia, cansado. Dormia, quase extenuado. Levantava-se para o serviço, esgotado.

E, assim — a primar pela coerência de espírito —, Gaulício Tormenta apresentou-se ao batente, arrebentado.

Quando o supervisor do turno passou por ele, disse-lhe:

— A preguiça ainda te mata, Tormenta!

 

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No mais das vezes cansamos de tudo. Dos discursos vazios, das utopias superadas, dos sonhos insípidos: nossos cansaços.

Ao revisitarmos tanto cansaço, concluímos, por nós mesmos, que o que nos extenua é o cansaço.

E, fadigados, entregamo-nos ao próprio cansaço.

 

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Febrônio Quintana assoviava desprezo ao caminhar pelas ruas de Licânia. A troçar do ritmo da cidade, a menosprezar a sabedoria dos doutos da província, a diminuir a memória dos heróis do passado.

Os homens de negócio julgavam-no anarquista. Os acadêmicos, um reles desiludido. Os historiadores, um invejoso de origem reles.

Mas Febrônio nem ligava, tão somente sorria cada vez mais, desprezando-os.

— Ridículos!

 

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Nonato Balcedo sentou-se na cadeira de balanço, mascou seu azedume de marido ciumento e esperou pela chegada de Marília. Quando a esposa abriu a porta, ele saudou-a:

— Esqueceu que tem casa, foi?

— Não, apenas me dei conta de que meu marido não presta. Antes tarde do que nunca, ensinou-me meu amigo Dirceu.

 

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Capitão Corveta subiu na canoa e espiou a correnteza do rio. Sentiu-se um almirante, apesar de lhe faltar um navio digno e uma justa tripulação. Coçou os bagos, ajustou o boné do Armazém Sexta-feira e exaltou-se:

— Minha vida por uma batalha naval!

Nesse exato momento ouviu-se o espoucar de um foguetório nos rumos da Matriz. Corveta abandonou seu posto, meteu-se de mata adentro, apesar dos rogos do seu assistente Pancrácio:

— Volte aqui, patrão! São os fogos da alvorada, abertura das novenas de Senhora Sant’Anna.

 

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Tomás Anchieta rezou, implorando aos céus que afastasse Diana dos seus sentidos:

— Pai, a fé me é rala, e a carne é fraca. Ah, meu Pai!

Nessa mesma noite Dalgisa viajou para a capital, não sem antes recomendar a Diana que não esquecesse o mingau do seu querido Anchietinha:

— Mingau de aveia, com um pouco de canela. É bom para recobrar as forças do bichinho. Leve ao quarto dele e insista, ele precisa se alimentar bem. E depois veja sempre se ele se cobre antes de dormir, tenho medo de vento encanado.

Dizem que, na madrugada, Deus fechou os olhos para o destino de Tomás Anchieta.

— Ah, meu Pai!

 

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— Quem cansa sem valia não vale a desvalia — propagava Gorena Mandra, o mais preguiçoso dos filhos de Licânia.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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