PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXLVII)

Clauder Arcanjo*

Profecias de um insone

Está morta a palavra,
Dizem alguns,
Mal é proferida.

Eu digo que só
Então nesse dia
Ela começa a vida.
(Emily Dickinson, em Duzentos poemas)

A palavra, antes de nascer dos lábios trêmulos, mostrou seus dentes de silêncio para os presentes. E, dizem, alguns sentiram tanto medo que gritaram um pavor tão extremo que emudeceu o cair da tarde.
À noite, sob a bênção insípida dos dicionários, deram-lhe a extrema-unção, encomendando o seu corpo descarnado para a terra das línguas mortas.
E, até hoje, quando alguém verseja em Licânia, ouve-se uma voz indecifrável que, julgam os mais crédulos, advém de um cemitério ágrafo.

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Não tente se expressar com palavras alheias. Se assim o fizer, um cheiro de mofo impregnará o seu discurso, sem falar nos pedidos de vênia que advirão dos filhos do lugar-comum.

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Um ourives de Licânia revelou:
— O ouro desta terra foi colhido no batear mais inusitado: embaixo de uma goiabeira (oh! madeira falsa), pelas mãos de um meliante arrependido, e nas terras do Zé Ninguém, que tinha roça para lá do Além.

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Quando o Preconceito se senta na condição de jurado, a Pena já se apresentou ao tribunal bem antes das provas.

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Dobrou a esquina, observou a rua entregue ao pastoreio dos cães e percebeu que tudo estava perdido.
Suspirou por Mariquinha, sentindo o seu perfume naquele instante de vigília. Levou os olhos para o céu e observou o voejar dos urubus, testemunhas últimas do seu retorno.
— Tudo em vão? Saí para buscar o sustento, e retorno quando não há mais… nada.

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Dá-me teu silêncio, que eu te oferecerei a partilha do instante final.
Nele, saibam todos, a voz não tem tradução, e as palavras só servem para conspurcar a revelação anunciada pela alvorada primeva.

Os melhores Ganhos — têm de ser Testados pelas Perdas —
Para que sejam — Ganhos —
(Emily Dickinson, em Duzentos poemas)

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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