Pílulas para o Silêncio (Parte CCXLIV)

Clauder Arcanjo

Entre o Silêncio e Eros

“… a desgraça é que foi levado à loucura por Eros, deus pagão, que quanto mais reprimido mais devasta…”
(Italo Calvino, em O castelo dos destinos cruzados)

Os braços abertos, a boca lívida e o corpo em fogo. No pequeno aposento, o silêncio que sempre antecedia a chegada dela.
Quando a noite já lhe anunciava o cansaço da espera, a chave na porta trouxe-lhe o sorriso aos lábios carnudos. Ele se fingiu em sono; mas, ao lhe ouvir o chamado, pôs-se de prontidão para mais uma madrugada em que Eros quebraria o silêncio da casa.
— Desgraçada. Tu acabas me levando à loucura!
E ela reprimiu o riso, entregando-se a ele, sem o menor remorso, como a um rito pagão.

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Arrivista e insolente, Dalmídio Gonzaga era homem de poucos amigos em Licânia.
Quando certa tarde, inflamado pela pinga forte, Dalmídio anunciou o fim dos tempos, os licanienses festejaram tal prenúncio, pois, imaginavam, só assim se livrariam daquele “maldito”.
Qual nada! No dia do tal apocalipse, Dalmídio Gonzaga vociferava diante da igreja matriz de Sant’Anna:
— Povo de Licânia, o inferno é pequeno para todos nós!

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Um comerciante de Licânia propagandeou:
— Quem comprar feijão a mim, nunca sofrerá de prisão de ventre. Quem levar para casa carne do meu balcão, jamais será vítima de sezão. E aquele que se perfumar das fragrâncias que eu comercializo será muito, mas muito feliz no amor.
Sua propaganda recebeu um duro golpe quando a cidade ficou sabendo de alguns fatos envolvendo sua clientela: Raimunda do Pirocide há dias não evacuava; Bastião sofria com as febres horrendas e intermitentes, e Donzinho, ao se aproximar da sua pretendente, foi recebido com uma estranha saudação: “Ô catinga infeliz!”.

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Se o talento não veste a sua poesia, a inspiração nunca se apresentará para lhe fazer companhia.

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Desceu do Olimpo apenas para humilhar os labutadores. Ao subir no púlpito para tripudiar dos poucos presentes, engasgou-se com a gosma virulenta do seu ódio e quedou sem vida.
No laudo cadavérico, a causa mortis: “apoplexia por suprema presunção”.

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Dançou abraçado com tantos adjetivos que, no meio do salão, desorientou-se: não sabia se a valsa era comum, se a cantora era um sujeito ou um objeto direto e, pior, se as vaias que ouvia eram um aposto, um vocativo ou mero advérbio de modo.

Se penso, é porque divago; se sonho, é porque estou desperto. Tudo em mim se embrulha comigo, e não tem forma de saber, de ser.
(Fernando Pessoa, em Livro do desassossego)

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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