PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXLI)

O silêncio no desassossego

Teu silêncio exigiu que as minhas palavras cessassem. Desorientado, pus meus olhos nos teus, e eles eram mais silentes ainda.

Decidi fazer barulho, mexendo nas gavetas, revolvendo nossos guardados, mas cada cômoda me revelava um silêncio antigo, restos indizíveis de outrora.

Resolvi ganhar a rua; os pássaros não chilreavam nos benjamins de Licânia e até o sino da Matriz de Sant’Anna se esquecera de chamar os fiéis.

Tarde da noite, voltei para casa e encontrei a porta aberta. A sala mergulhada no vazio. O nosso quarto imerso na paz incômoda das horas derradeiras. Sobre o leito, um bilhete teu. Rasguei-o, calma e decididamente, antes sequer de lê-lo. Nunca admitirei a tua partida.

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Notei que a noite queria se espichar nos beirais do tempo. A chuva fina como se abençoasse aquele instante de fortuna. Sem medo, sem planos, sem remorsos. Apenas, e tão somente, a sentir o capricho de um instante indecifrável, ao passo em que reconfortante.

Ao tentar admirar as estrelas, concluí que aquele céu sagrado era infenso à poesia.

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Um renomado filósofo de Licânia me advertiu:

— Leia Montaigne como quem sorve uma dose de uma bebida rara. Cada sentença como se contivesse o néctar da reflexão, cada passagem como se precisasse apenas da sua companhia para traduzi-la, ensaiando um passo tímido na direção do seu interior mais profundo.

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Se desejas com volúpia e avidez, hás de perceber que o desejado se espanta e não se revela pleno à tua fúria de conquistador.

Achega-te como quem se aproxima de um cristal frágil e raro. Não o conspurque com as tuas mãos sedentas.

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Rabiscou, tomado pelo açodamento, alguns versos no papel sobre a escrivaninha. Envaidecido, decantou-os aos quatro ventos.

No entanto, ao relê-los tarde da noite, sozinho no silêncio da madrugada, sentiu vergonha do seu estro.

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Quando cansava de si, ele se recolhia em sua alcova. Lá cuidava de olvidar o seu dia e de se preparar para o seu renascimento na virginal aurora seguinte.

Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção, isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.
(Fernando Pessoa, em Livro do desassossego)

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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