PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXIX) – Clauder Arcanjo

Foto: Igreja da província, de Marcelo Visentin.

Apontamentos de um descrente aflito

 

A menção do sacrifício é quase igualmente constrangedora. Sublime à primeira vista, esse elemento arcaico é inseparável de uma odiosa concepção de Deus ou dos deuses. Nem Isaac levado ao sacrifício nem Ifigênia caindo no altar provam outra coisa senão o desatino humano.

(Marguerite Yourcenar, em A eternidade, o que é?)

 

Os lábios se contraem, mas a oração não acode à boca murcha de descrença. Lá fora os sinos repicam, e seus chamados o enervam.

Abandona a leitura e, aflito, caminha em torno da escrivaninha. Sobre ela, Guy de Maupassant, Machado de Assis, Augusto dos Anjos, Lima Barreto… e uns rabiscos seus, feitos, eleitos e refeitos (ou estariam na condição de meros garranchos?) ao longo da insônia da última madrugada.

Abre a janela; e o sol, em cinza agônico, revela que o mundo não o socorrerá nesta manhã apática.

Volta para o seu ofício de escrevinhador, e pressente um poema bissexto em viés de parto. Na folha branca, entretanto, apenas a placenta grafítica de um esgar, em forma de aborto lírico.

Os lábios se abrem. Descrente, um choro se esvai em lágrimas: “Nem a literatura me salvará!”

 

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A nobreza do silêncio dominical se viu ultrajada pela balbúrdia do escárnio da vizinhança.

Incomodado, Alcides Trajano resolveu encarar o conflito. Abriu, então, a janela que dava para a rua e cantou, a plenos pulmões, uma ária de Puccini.

Os vizinhos estranharam aquele assomo de Trajano, e se calaram perante tal cântico de loucura. “Coitado do Alcides, a pandemia o enlouqueceu!”, comentaram.

Na rua da frente duas rolinhas sobre o fio de alta-tensão se bicavam, em alvoroço de paixão.

 

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Dormirei de bruços, envergonhado da minha fé. Os santos não me acudiram, os padres tão só a propagarem homilias sem a crença pessoal, e os acólitos apenas insistem na recolha dos dízimos.

Quando acordar, quem sabe mais tranquilo, revisitarei o Apocalipse e o Eclesiastes.

Ecce implevit!

 

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Não se importava com a alcunha de Zé Louquinho. E por que haveria de se incomodar?

Antes se ser louco infante, ele fora testemunha dos descasos das famílias com os seus ditos “filhos ilegítimos”; no mais das vezes entregando-os à sorte e ao desamparo.

Na fase de louco adolescente, testemunhara os homens da lei julgarem os crimes com a métrica das posses. “Pobre nunca aprende, cadeia neles!”, asseveravam. Quanto aos mais endinheirados, a decisão de imputar-lhes a “arte da legítima defesa”, quer do corpo, quer da honra.

Agora, velho e a fugir das pedradas da criançada, Zé Louquinho mete-se entre as ruas e os becos, a revolver os pecados dos habitantes de Licânia.

Enquanto na reunião dos homens e mulheres de boa-fé, na casa paroquial, apenas Dona Maria reza por aquele filho de Deus. Os demais, de cara lavada, soletram entre si: “Zé Lou-qui-nho!”.

 

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Muitas vezes os nossos desatinos são a melhor parte humana do que sobrou de nossas sucessivas renúncias.

 

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Após se confessar com o pároco da província, Maldívia Anunciatta sentiu que saía da igreja acompanhada por um séquito de fantasmas.

O perdão de Deus não a premiaria com a sua própria remissão.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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