PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXCVII)

Bom Samaritano, depois de Delacroix; de Vincent Van Gogh)

Para o amigo Marcus Saraiva
Um cavalo chegou ao campo. Sem noção, feriu-se no arame da cerca.
Desorientado, caiu na vala que abriram para a construção do silo.
— Cavalo doido!
— Não, Pedrinho, melhor seria dizer cavalo cego! — adverti.
Pedrinho girou em torno de si, meteu as mãos nos bolsos da bermuda e
indagou-me:
— Padrinho, a gente sempre se confunde assim na vida?
Como responder a Pedrinho nunca me fora fácil, pensei, pensei… e
respondi:
— Muitas vezes, rapazinho, toma-se por louco aquele que nunca foi bom
de vista.
E, antes que Pedrinho me constrangesse, toquei-o para dentro de casa:
— Vamos. A esta hora sua tia já deve estar a gritar por nós dois.
— Como cega ou como louca, padrinho?

PÚBLICA

No alto da cumeeira da casa-grande, um peru com arroubos de galo.
— Desce daí, seu desnorteado! — clamou Lídia, a velha cozinheira.
— Esta fazenda sempre me pareceu terra de malucos. E agora até os
bichos perderam o senso — vituperou Alcebíades Pandófilo, o vizinho
rabugento.
— Valei-nos, Nossa Senhora do Desespero! — orou Matilde Donzela,
sempre a rogar pela intercessão divina.
Daí a pouco um tiro de espingarda pôs tudo no seu devido lugar.
— Cozinhe esse peru para o almoço de amanhã, Lídia. E o compadre
Pandófilo é o nosso convidado de honra! — falou Sigefredo Mitis, herdeiro
daquelas várzeas.

Condenado ao escárnio da turma, Flavinho resolveu mergulhar no
silêncio.
Com uma semana, atribuíram seus novos modos à casmurrice. “Isso
vem de pai para filho. Seu avô vivia calado; o pai, nem se fala!”
Mês seguinte já captaram em sua mudez um quê de indescritível. “Tanto
silêncio deve esconder coisa que nunca vimos. Sei não!”
Sete meses depois a cidade inteira o incensava como o novo profeta.
“Quando ele quebrar o silêncio, creiam, todos os mistérios do Céu e da Terra
nos serão revelados!”
Na manhã de hoje, Flavinho, após servir-se de uma farta refeição,
presente dos seus seguidores, arrotou como um leão.
Todos viram naquele seu ato o anúncio do Apocalipse. “O fim está
próximo!”

PÚBLICA

No início da noite Acácio bate à porta. Mal se instala na sala, já me pede
que lhe sirva um café. Quando lhe sirvo, ele me revela:
— Vim aqui dividir com você algo que descobri.
Sento-me e espero. Acácio pigarreia e me diz, com voz de recital
poético:
— “El silencio no es una ausencia de sentido; al contrario: aquello que
no se puede decir es aquello que más nos toca”.
— De quem, Companheiro Acácio?
— Octavio Paz. Muito mais interessante do que qualquer dessas suas
“Pílulas para o silêncio.”
E se retira, deixando-me com a máxima de Paz a ressoar em minha

mente.

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-
grandense de Letras.

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