Pílulas para o Silêncio (Parte CCXCV)

Clauder Arcanjo*

 

(A banheira, de Edgar Degas)

Para o amigo Galileu Viana
Eucânio Súcio nunca fora muito chegado a um banho. Quando criança,
corria da chuva. Alegava pavor a raios e trovões. Jovem, não comparecia a
nenhum dos piqueniques nas cabeceiras do rio. “Não posso me expor a
acidentes”, argumentava.
Já invadido pelos anos, tornara-se um curioso nas artes da perfumaria,
dizem que no intuito de substituir o castigo do chuveiro por umas gotas de
fragrância.
Quando Eucânio, rapaz velho, caiu de amores por Florípedes Dalva, ela
de pronto fez-lhe jurar:
— Se de fato me amas, senhor Súcio, quero-o bem banhado.
Entrou então embaixo d’água como para cumprir uma condenação. E,
seja dito, ele teve direito a alguns afagos de Dalva naquela noite.

PÚBLICA

No entanto, na manhã seguinte, Eucânio Súcio caiu doente, com febre
muito alta. Para morrer de pneumonia uma semana depois. Limpidamente
apaixonado.

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Almacílio Ferrácio era homem de opiniões pétreas.
Na política, um conservador de nascedouro. Filho, neto e bisneto de
tradicionais latifundiários de Licânia.
No esporte, a preferência pelas vaquejadas. “Coisa de cabra corajoso!”,
defendia Almacílio com o relho na mão.
Quando do nascimento de Maria Helena, Ferrácio, já entrando na casa
dos cinquenta, viu-se abobalhado por aquela “pequeninha tão frágil”. Ele que
tivera apenas varões.
Com os anos, Almacílio passou a somente ter ouvidos para as opiniões
de Heleninha. Como esta se fez defensora dos excluídos, Ferrácio anunciou
uma polpuda doação mensal ao Lar da Caridade de Licânia. Ao perceber que
ela detestava o sofrimento das quedas de boi, resolveu migrar para o gamão.
Semana última, Almacílio Ferrácio teve que suportar o anúncio do
primeiro namoro da herdeira querida. Quando o pretendente foi entrando na
sala, Ferrácio cuidou de adverti-lo, recebendo-o com a peia em riste:
— Nesta família, seu cabra, só há donzelas, mulheres casadas ou
viúvas.

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Quando Adalmires chegava em casa e dava com o esposo banhado,
barba feita e de bermuda nova, ela sabia que aquele santo queria outro altar de
núpcias.
Certa tarde ela entrou em casa acompanhada de uma enxaqueca
ferrenha. Ao perceber o esposo arrumado e querente, Adalmires foi depressa
advertindo-o:
— Tome um copo de água bem gelado, meu velho, que essa vontade
condenada logo passa.

PÚBLICA
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Quando o boticão pegou no dente avariado, o dentista fez força, jogando
a coitada da mulher de um lado para o outro. Nada da raiz soltar-se, a infeliz a
gemer e a lamentar-se, apesar do efeito do anestésico.
Quase uma hora depois, os dois suados, dentista e paciente, o siso foi
extraído.
Na saída, a pobre dama abriu a bolsa, pagando o ajustado. O filho mais
novo, que a tudo assistira, reclamou:
— Você sofreu, gritou… e ainda dá dinheiro a esse desgraçado, mãinha!

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Quem nasceu em chiqueiro julga estranha a florada mais perfumosa.

 

Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras

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