PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXXXVIII)

Clauder Arcanjo*

 

Confidências a Rimbaud

 

Pela janela vê-se ao alto o céu azul;

A natureza acorda e de raios se embriaga,

A terra, seminua, em ânsias de viver.

(Arthur Rimbaud, em “A consoada dos órfãos”.)

 

Há, dentro de mim, uma sensação de fúria e revolta, como se o mundo não me bastasse, Rimbaud, ou sequer me compreendesse. Ouço vagamente, ao longe, o prenúncio dos teus versos e eles me encantam, ao traduzirem tal ânsia, num paroxismo de alumbramento e estranheza.

 

Calado seguirei, não pensarei em nada:

Mas infinito amor dentro do peito abrigo,

E como um boêmio irei, bem longe pela estrada,

Feliz — qual se levasse uma mulher comigo.

 

Nesta tarde primaveril, tomado pelo instante infinito, o vento sopra sobre a minha cabeça desnuda; pouco depois mergulho num pensar que logo se assemelha a um dormitar. Acordo e não entendo onde estive, nem no que sonhei.

Haverá em meu rosto a miséria de uma lágrima amarga, esquecida?

 

Miséria! Pois agora ele diz: Sei das coisas

E vai, sem nada ver e cerra os seus ouvidos.

— Já não há deuses! já não há! o Homem é Rei,

O Homem é Deus! Porém o Amor é a grande Fé!

 

— Amor? Verlaine? — questiono.

Há uma Afrodite estranha na tua paixão, Rimbaud, imersa numa imensa claridade, porém cercada de olhares inquietantes; pupilas de seres de almas alumiadas, mergulhados no fosso infernal das “servidões impuras”.

 

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Somos obreiros, sim, Obreiros! Fomos feitos

Para os tempos a vir em que haverá saber,

Em que o Homem forjará do amanhecer à noite

Querendo o grande efeito, ansiando as grandes causas,

E, aos poucos, vencedor, há de domar as coisas,

Em Tudo há de montar qual montasse um corcel!

 

Se o tempo há de vir, ele despontará com a sua forja de luz em uma aflição de efeitos inumeráveis. Num ar que cheira à batalha e com um visgo de eterna adolescência.

Quanto às grandes causas, Rimbaud, essas são as que nos tomam a carne e tentam nos domar a luxúria do corcel do espírito.

 

No banco esparramando as nádegas obesas,

Um burguês, os botões brancos da pança inflando,

Saboreia o cachimbo onde pendem acesas

Iscas de fumo — sim, fumo de contrabando

 

Incensado sobre os corações em chamas, “ardendo em febre louca”, bulindo com os malandros e as putas, importunando a rotina “castiça” dos omissos, fedendo a fezes, tal qual “a bela hediondez de uma úlcera no ânus”.

 

Correr azul na pele branca

De róseo tom;

E te falando a língua franca…

Que sabes… — Bom!…

 

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Dezessete anos, Rimbaud, e já grande poeta! Um novo Shakespeare?

 

Não se pode ser sério aos dezessete anos.

Um dia, dá-se adeus ao chope e à limonada,

À bulha dos cafés de lustres suburbanos!

— E vai-se sob a verde aleia de uma estrada.

 

E ganhaste os desertos e as armas, Rimbaud, e nos deixaste com o perfume incomum dos teus poemas, a trescalar seu odor de arquejo e calor de estradeiro.

E eu, até hoje, não sei dizer se alguém mais pode ser sério aos dezessete anos. Será que regressas?

 

Nesse dia, ah! meu Deus… com teus ares ufanos,

Regressas aos cafés, ao chope, à limonada…

— Não se pode ser sério aos dezessete anos

Quando a tília perfuma as aleias da estrada.

 

E existirá retorno para quem sempre conosco ficou? Não um ficar de corpo, mas um eternizar de Poesia.

 

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— Existe um Deus, que ri nas toalhas dos altares

Num cálice dourado, entre incensos, e nesse

Tranquilo acalentar de hosanas adormece

 

Este Deus havia em Licânia, e eu menino me incomodava com a tirania dos párocos, a nos incutir o pecado na alma, quando pecado nenhum em nós existia, puras crianças.

O sineiro da minha terra intensificava os repiques; e as beatas mastigavam impudicos fuxicos, enquanto rezavam, contritas, suas ave-marias.

 

E acorda quando as mães, morrendo de pesares,

Choram de angústia, sob o negro xale imenso,

E Lhe dão uma moeda, amarrada no lenço!

 

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Lá ia eu, de mãos nos bolsos descosidos;

Meu paletó também tornava-se ideal;

Sob o céu, Musa, eu fui teu súdito leal,

Puxa vida! a sonhar amores destemidos!

 

E li e solfejei, infatigavelmente, tuas estrofes inúmeras noites, Arthur Rimbaud. Algumas vezes, sob o manto do indescritível. Outras, com o susto “junto ao meu coração”.

“— Sociedade, está tudo em ordem: — as orgias/ Estertoram de novo em velhos lupanares:/ E, delirante, o gás nos muros encarnados/ Arde sinistramente à palidez dos céus!”

— Rimbaud! Estás aqui, poeta prodígio!

 

Fonte: Poesia completa, de Arthur Rimbaud; tradução, prefácio e notas de Ivo Barroso (Rio de Janeiro: Topbooks, 1995).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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