PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXXXVI)

                                                                                                  Clauder Arcanjo*

 

Confidências a Espíndola

 

Não há outra verdade

senão a que invento.

(Adriano Espíndola, em Escritos ao sol.)

 

Feito um cão solto,

súbito o sol

salta janela

adentro do quarto.

E eu desperto para uma manhã que se finge de azul, mas que, pelo seu olhar vesgo por detrás das nuvens, revela-se cinza como o horizonte que, bem próximo, se insurge. “Amargo apenas é o sumo do dia.”

Será que ainda estou com saudade da madrugada?

 

Se tens fome de madrugada,

toma uma folha de papel em branco

e nela sorve em silêncio

com volúpia o nada

que te espanta e consome.

 

— Adriano, estou cansado de tudo. Até o silêncio me incomoda — desabafo.

No entanto, uma réstia de luz me pede calma, ao pousar sob os meus pés amarelos. Sujos de vergonha, incomodados por minha omissão ao desgoverno do mundo. Máquina de esbulho.

 

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Todos os dias,

batalho silenciosamente.

 

Eu espio teus versos, Espíndola, e eles me agitam. Alma, corpo e sonhos. Haveria, então, um mundo de utopias poéticas?

Enquanto tal interrogação escapa dos meus lábios pálidos, um brado de incerteza se avoluma em mim. “Calma, sonhador!”.

E eu me irrito, a indagar: “E onde estarão os líricos?”

 

O poeta existe

de se ver, ouvir, pegar,

sempre ali desperto?

 

Sinceramente, amigo, a poesia está na esquina, leviana e dadivosa, com brios de senhora da noite. E será que algum táxi a aguarda?

Não sei, sinceramente não sei. A seguir, caio numa pasmaceira, diante de tudo que se repete, um tudo-nada que nem me inebria nem me alevanta o ânimo.

 

Uma palavra me falta ainda,

para arrastar poema acima.

 

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Mergulho numa espera sem sentido e, com pouco mais, reencontro o absurdo, a teimar em se entranhar na minha carne, perfurando e incomodando o meu juízo. “A minha pátria /é o agora…”.

No entanto, desconfio, a ela não regresso como outrora.

 

Toda palavra é um rio

distante

que desemboca

neste instante

na minha voz.

 

Minha voz é um labirinto de palavras, sangue e fúria a esmo, à procura de estro, quando se satisfaz em ser tão só vazio degredo. “Branco este instante que a tudo resume.”

Minha voz, agora, é um dédalo imerso em arremedos, “num enlace agreste e inteiro” de pulsões da memória, consolos infantes, e pastiches incessantes sem engenho ou graça.

 

Neste verso, procuro, ainda, meu rosto.

 

E o meu semblante por onde andará, Espíndola? Se saiu, não me deixou recado. Quando voltará, não me devolverá as ilusões-máscaras que, antes, quando eu menino, me acompanhavam pelo chão de Licânia, “plumas de orvalho”.

 

Feito um cego ao sol

e em silêncio,

eu bebo entre as mãos

a tua ausência.

 

Silêncio que me traz o repique do sino da Matriz de Licânia, sempre a anunciar o funeral (“Ó pensamento rugoso de Deus sobre os muros”) das minhas quimeras.

 

Poucos são os fiéis,

muitos os ouropéis.

 

Na calçada da rua Mateus Mendes, 75, meu pai me abençoa, “ferindo de espanto o mundo”, e me pede persistência. Beijo suas mãos dadivosas e meto-me na estrada, teimoso e renitente como quê.

 

Sobre a calçada, um mendigo cata

a queixa sonante das moedas.

 

Logo à frente, um homem, de barba e jeito franco, me convida a acompanhá-lo rumo ao “inominável delírio do presente”.

— Adriano Espínola! Quanta honra!

 

Fonte: Escritos ao sol, de Adriano Espínola (Rio de Janeiro: Record, 2015).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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