PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXXXV)

Clauder Arcanjo*

 

Encontro com Paulo Mendes Campos

 

O brasileiro adia; logo existe.

(Paulo Mendes Campos, em O mais estranho dos países.)

 

— Paulo Mendes Campos! Que prazer, há quanto tempo!

Ele acende um cigarro, pigarreia e, em seguida, em estado de plena mineirice, desabafa: “Resta por fim como espantalho gritantemente brasileiro, vergonhosamente brasileiro, o pobre, o nosso compatriota de pé no chão, destroçado pelos parasitas, cegado pelo tracoma, morando em casebres de barro, palafitas, mocambos, favelas, coberto de feridas, analfabeto, mal alimentado, vestido de farrapos, pobre criatura humana, pobre bicho humano, pobre coisa humana, pobre brasileiro humano.”

Nunca o vira tão melancólico; seria a leitura do mundo, sempre coberto por sombras e maus presságios? Um vento sopra à nossa frente, Paulo emenda, sobranceiro: “E o brasileiro será o irmão do vento, que ninguém entende.”

Ponho a mão direita no seu ombro e me ponho a lhe narrar causos do meu Nordeste; ele, então, esboça um quê de riso torto e me confidencia, em solfejos de dó maior: “Conversando com aquela bonita senhora fantasiada de elegante, vemos um colunista célebre, respeitado e bem pago. Descobriram a sua esmagadora vocação jornalística no dia em que escreveu ‘sociedade’ com Ç. Riram-se dele os colegas. O moço corrigiu logo, trocando o Ç por um S cedilhado. Aí não se riram mais. Um homem capaz de inventar um S cedilhado tem garantido um feérico futuro no colunismo social. Coisa muito séria.”

Seguramos a gaitada frouxa, enquanto, sem perda de tempo, cuido de lhe indagar acerca de ser mineiro. Paulo, filosoficamente, bem o define (ou seria se define?): “Mineiro é a importância de ser calado, econômico, modesto, engraçado, reservado, tradicionalista etc. São virtudes perigosas: é só abrir um pouco mais o compasso e viram defeitos: o calado costuma virar jururu (vocábulo pré-freudiano); o econômico, pão-duro; o modesto, parvo; o engraçado, chato; o reservado, desconfiado; o tradicionalista, carrança.”

Resolvo mergulhar, prosaicamente, no campo da prosa poética; no entanto, ele me corta a divagação literária e me alerta: “O poeta quando tem alguma coisa a dizer escreve prosa; o prosador quando nada tem a dizer escreve poesia.”

Na esquina seguinte, uma parada frente à praia; assombrosamente calma, como se celebrasse o silêncio da areia. Paulo desabafou, cabisbaixo: “O Rio de Janeiro tornou-se em desolação e em vaia perpétua; e todos que passam por suas ruas ficam espantados e meneiam a cabeça; porque o Rio de Janeiro se quebra como uma vasilha de barro; e os donos da cidade não percebem os clamores de sua ruína.”

Sinto-me macambúzio, quase como se em estado de profunda fossa. A saudade da minha Biscuí. Ele, a partir da minha reação, revela-me: “Alguns, uns poucos, descobriram que viviam na fossa e não sabiam; foi como se tivessem encontrado o mal que lhes roía sem doer. Passou a doer.”

 

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Minutos depois, o silêncio entre nós, cativa e memorável companhia. Com pouco, a voz mineira de Paulo Mendes Campos irrompe em forma de destemida confidência: “O tempo. O tempo me sobra demais ou me falta. Uma branca eternidade de horas atadas. Uma braçada de horas iguais e inúteis. Ou esta pausa indefinida de quem espera o beijo de um anjo. Ou a campainha de um telefone.”

E concluo, satisfeito com tamanha arte:

— Paulo Mendes Campos! Que prazer!

 

Fonte: O mais estranho dos países, de Paulo Mendes Campos (São Paulo: Companhia das Letras, 2013).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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