PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXXXIX)

 

Clauder Arcanjo*

 

 

Confidências de Acácio

 

Ao retornar para casa, depois de comparecer à minha sessão eleitoral no último domingo, reencontrei o Companheiro Acácio na frente de uma cafeteria. Resolvi entrar, convidando-o para sentar comigo a uma mesa mais ao fundo. Ele aceitou a minha proposta, arriando o corpo, já um pouco flácido pelos anos, na cadeira voltada para a rua, demonstrando-me, com o seu cenho fechado, que estaria num daqueles dias ruins.

Também percebi em seu olhar uma névoa que tornava Acácio deveras sorumbático. Eu, de início, quis puxar conversa, mas Acácio me conteve com o seu silêncio.

Abri, então, a minha mochila e dela retirei um exemplar de Ética a Nicômaco. Acácio pôs a vista sobre aquele Aristóteles e advertiu-me, melancolicamente:

O homem verdadeiramente político também goza a reputação de haver estudado a virtude acima de todas as coisas, pois que ele deseja fazer com que os seus concidadãos sejam bons e obedientes às leis.

Acácio e sua mente prodigiosa a decorar passagens inteiras dos clássicos.

Respeitei seu estado de espírito e, para ganhar um pouco de tempo, pedi café para dois.

Sorvemos a rubiácea refletindo, silentes, sobre aquele trecho de Ética a Nicômaco e os dias atuais.

“Como sabia disso?”, você me indaga, caro leitor. E eu lhe respondo: no tipo de amizade que nos une, as palavras são prescindíveis.

Ao perceber o meu pensamento, Acácio ponderou:

— A política não seria a arte de buscar o bem comum, Clauder Arcanjo?

Antes de responder ao Companheiro — isto eu aprendi a duras penas —, melhor refletir e avaliar do que, se afoito me fizer, ter que remediar. Fui, voltei seguidas vezes no meu raciocínio e, satisfeito com o que juntara, ponderei, altivo:

— Não estamos no fim dos tempos!

Acácio, com os lábios trêmulos, devolveu-me, num estado de comoção que me deixou sobremodo preocupado:

— Pelo jeito, Arcanjo, você continua a se encantar com o Apocalipse. Saiba que, antes do fim, caso ele se dê, poderá haver ainda muito choro e ranger de dentes neste mundo de expiação. Em especial, amigo, penalizando os mais desfavorecidos.

Meti meus olhos no fundo da xícara vazia e me perdi em divagações mil. Quando levantei o rosto, Acácio, de pronto, recitou:

O poema me olha no espelho:

 

o que me dói

  é a saudade do menino

  e o desencontro com o homem.

— São versos seus, Companheiro Acácio?

Ele me pôs aqueles olhos perdidos e silenciou. Um silêncio de doer como a saudade mais travosa.

Sei que Acácio não deve ser pressionado, tem o seu próprio tempo, anda no seu próprio ritmo.

Minutos depois, disse-me:

— De Nirton Venâncio, em Trem da memória.

Não sei se levado pela poesia de Venâncio ou empolgado com o reencontro com Acácio, depois de uma longa ausência, resolvi declamar:

É esta a hora em que o tempo é abolido/ E nem sequer conheço a minha face.

— De Sophia de Mello Breyner Andresen — emendou. — Pelo menos, desde o nosso último encontro, você melhorou seu nível de leitura, Clauder.

E, sem esperar pela minha tréplica, vi-o recitar:

Os sinos para o ditador /Golpeiam a noite e os ares, /E os meninos se urinam, /Pois a manhã os encontrará órfãos.

— Mas isso é de um poema meu!

— Sim, de vez em quando, Clauder Arcanjo, você concebe alguns bons versos. Não sou de venerá-lo, porém seu poema “Sinos de ditador” tem um quê de qualidade. Pequena, mas tem.

E voltou a sorrir.

Acácio, irônico, aplaudiu-me; e eu fiquei sem jeito por ele ter apresentado uma estrofe minha.

Frente à cafeteria, alguns senhores discutiam os rumos que os dois candidatos melhor avaliados nas últimas pesquisas iriam dar à nossa nação. Mais esbravejavam do que debatiam.

De pronto, notei um mal-estar em Acácio e, com receio de que ele fosse se intrometer naquela discussão, resolvi acalmá-lo dando continuidade ao nosso singular recital:

Ah, chega de lamento e versos ditos

ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça,

ao ouvido do muro (…)

— Andou lendo Drummond, Clauder Arcanjo? — inquiriu-me Acácio, zombeteiro.

— Sim, é muito bom revisitar “Elegia”. Sempre neste poema ganho (e perco) meu dia.

E rimos, sarcasticamente. Pagamos a conta e saímos a flanar pelas ruas naquele domingo de tanta agonia.

No entanto, cá entre nós, na esquina seguinte já declamávamos, contentes, um verso de “Sonata do amor perdido”, de Vinicius de Moraes: “Oh, beijemos a terra e sigamos a estrela que vai do fogo nascer no céu parado…”.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

Clauder Arcanjo

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