PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXXXIV)

Clauder Arcanjo*

 

Estética do desassossego

 

Haja ou não deuses, deles somos servos.

(Fernando Pessoa, em Livro do desassossego.)

 

Percebo algo em mim, como se fosse “aquele sentimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito”.

Saio à rua. De repente deparo-me com um senhor. “A sua voz era baça e trêmula, como a das criaturas que não esperam nada, porque é perfeitamente inútil esperar.” Seu nome: Bernardo Soares.

Lá fora uma chuva fina, tornando a cidade estranha, marcada por um tédio incomum. Vejo-me cansado, “o tédio torna-se desconforto, mágoa física”. Estou farto dos compromissos da vida, sonhos alheios que a sociedade tenta me impor, exigindo que sejam meus.

Recorro ao que levo no coração, mas ele me adverte: “O coração, se pudesse pensar, pararia.”

Volto para casa. Junto à porta de entrada, um cão observa-me com suas pupilas metafísicas. Fecho a porta, antes convido o meu novo amigo a entrar. Intrigado com tudo ao redor, sento-me à escrivaninha, tomo da pena e rabisco. Bernardo Soares, então, provoca-me: “… a prosa ou o verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura.”

Tento refletir; porém, hoje, a menor das reflexões me cansa. Fecho os olhos e busco fugir de tudo, o gozo do nada a me consolar.

A lembrança da tarde de ontem aparece-me, vívida. Mais uma tarde de verão; nela, “o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício”.

Irritado com meus fumos de melancolia, ouso perscrutar o inominável caos do momento presente. No seu interior, haveria a calma necessária? Mal penso indagá-lo, ouço-lhe a esperada argumentação: “No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação.”

Saímos pelas ruas; sem destino, tão somente sob a guia do acaso.

“Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou” — revela-me.

Surpreendido por este singular testemunho, tento, em vão, consolá-lo. Contudo a consolação lhe retiraria o melhor pedaço, naco de revolta que o faz vivo.

— Que Deus o…

Nem me deixa finalizar, advertindo-me: “Há os que Deus mesmo explora, e são profetas e santos na vacuidade do mundo.”

— Quem sabe, Bernardo, o alívio da arte? — proponho-lhe.

— …

O silêncio entre nós, companhia que diz mais do que qualquer palavra. Com o olhar tristonho e o corpo curvo, observo as nuvens baixas. Calmo, aguardo, a instigar-lhe uma resposta.

“Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente.”

— E a arte de escrever, amigo? Minhas desculpas, sei que estou a importuná-lo. Falemos apenas daquilo que lhe interessa.

“Tudo me interessa e nada me prende” — admoesta-me.

Isto jogou-me nos braços da quietude. O tudo e o nada. O nada e o tudo. A antítese daquele desassossego a se estender, indefinidamente, no labirinto da vida. Ou da morte?

“Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir”; como a abrandar a minha infinda curiosidade.

Antes que lhe indagasse acerca da multiplicidade de personas que habitassem nele, Bernardo Soares pontuou: “Pari meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo.”

Tantas confissões tornaram-nos, de uma certa forma, íntimos. Contudo, quanto mais flanávamos por entre becos e vielas, mais nos perdíamos naquele prosear angustiante e luminoso.

Na esquina última ele apertou a minha mão direita e soprou-me, contrafeito: “São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.”

Continuo a perceber algo em mim, como se fosse “aquele sentimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito”.

 

Fonte: Livro do desassossego, de Fernando Pessoa (Nostrum Editora).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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