PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXXXII)

 

Clauder Arcanjo*

 

Minha casa

 

A casa está viva.

Inteira como uma lenda,

Intacta como uma pedra,

Perfeita como o deserto.

Afinal, somos nós que ruímos…

(Hildeberto Barbosa Filho, em “Pastoral da casa antiga”.)

 

Foi reformada, expandida, para os lados e para cima. Mas, creia-me, permanece com a mesma memória. Explico. Quando entro em seus domínios, ouço a voz de minha avó paterna perguntando a todos: “É o meu Zequinha?”. Ao me aproximar da cozinha, o cheiro gostoso do doce de leite da boa Lídia, com aquela voz singular: “Prometi isso ao José Maria”.

E, ao penetrar em qualquer de seus quartos, a saudade de papai a soar pelas paredes. Com pouco mais, a voz de mamãe a abençoar-me os passos: “Deus o proteja, filho!”.

Quando tudo me faltar (ou o mundo quiser me consumir), sei que haverá minha casa para trazer de volta o vívido mundo de Licânia.

 

***

 

Cada tijolo de nossa morada tem o barro das lembranças, aprumado pelo viés do tempo e rebocado pela ternura dos anos de infância. Quanto ao medo, ele, sim, ainda permanece no alto, incrustado nas teias de aranha, estendidas por entre os forros.

 

***

 

Toda construção carrega uma lenda em si. Por isso que sou contra aqueles que destroem o casario antigo, é como se assassinassem tão lendário patrimônio.

 

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Trago, ainda hoje, no fundo dos meus olhos, a poeira daquele instante. Era uma tarde quente e o vento soprava por entre teus cômodos; de repente, tocou-me a vista, lacrimejada de saudade.

No outro dia, logo cedo, viajaria para bem distante, os estudos me exilaram de ti. A partir da mudança, eu bem desconfiava, nunca mais teria aquele endereço como referência postal.

 

***

 

— Há tantos lares quanto exílios? — interrogou-me o peregrino.

Cacei um argumento no bisaco das minhas certezas, mas nada de lá extraí.

— E tu, caminhante, há por acaso em ti quantas moradias? — devolvi-lhe.

Ele bateu a poeira das mãos e, fitando o horizonte gris, não me deu resposta; um destino novo o aguardava.

 

***

 

Este edifício não tem palmeiras, muito menos sabiá. A saudade que aqui gorjeia… nasceu lá e veio para cá.

Lá na nossa casinha tinha tantas estrelas; várzeas das quais nunca colhi flores, mas me lembro daquela vida, vida com muito mais amores.

Os primores que encontro cá são fantasmas troçadores a desfrutar do meu chorar. Quero minha casa um dia, antes que eu morra por aqui, sem que aviste as carnaubeiras com seu belo acenar.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá…

 

***

 

Existirá um além em que a memória encontre pouso eterno na rua Mateus Mendes, 75. Proclamaremos, então, uma felicidade duradoura em reviver nossos gestos, projetos, medos, fantasmas… Todos abrigados na gesta abençoada, patrimônio maior de Zequinha e Maria.

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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