PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXXX)

Clauder Arcanjo*

 

Minha palavra

 

Onde há palavra, há deus. Onde nasce a palavra, nasce deus. Todos os outros lugares são ermos sem dignidade.

(Valter Hugo Mãe, em A desumanização)

 

Na noite sem atrativos, há uma luta do escritor para encontrar a palavra certa. Não a palavra exata, pois exatidão não combina com a poesia que ele espera extrair do verbo fugitivo.

Na escrivaninha, ele rabisca, tenta, lima, inventa, soletra, escreve, reescreve, corta, refaz… e a frase menor toma foros de grandiosidade. E, nesse mister infindo, aprende que o menos, quase sempre, é mais.

 

***

 

Com a presença do leitor, o ciclo se fecha. O escrito e o lido se irmanam (quando assim se dá); e, assim, a criação antes supera a intenção inicial do criador. Quando tal comunhão encanta os dois, reza o mito, os céus abençoam tão sublime casamento.

 

***

 

Minha escrita nasceu com a primeira letra descoberta. De rabisco passou à condição de alfabeto. De alfabeto, à sílaba. Desta, para palavra… e as palavras nunca pararam de brotar dentro da lavoura da minha mente, para encantamento dos meus olhos. Neste movimento, a província se alargou, e o meu mundo se transformou. Licânia ia de norte a sul, de leste a oeste. Nos livros, revelaram-me, havia lugares nunca dantes percorridos (e que estavam bem perto).

 

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Todo homem que lê é um aletrado. Pensa que o lido é seu, que a aventura foi sua, que o fantástico se deu, e que a poesia dele brotou. Todo homem-leitor alarga-se dentro do seu pequeno mundo.

 

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— Há quantos dias tu não escreves? — inquiriu-me o vizinho.

Estranhei aquela pergunta, pois, pensei, como um escritor sobreviveria sem a sua ração diária de fantasia.

— Há quantos dias tu não lês? — indaguei-lhe.

E o meu vizinho, envergonhado, encerrou a questão.

 

***

 

Sou, de carne, filho de Zequinha e Maria. De registro, no cartório.

Mas, nas letras, sou filho de Cervantes, de Montaigne, de Machado, de Dostoiévski, de Maupassant, de Graciliano, de Rachel, de Tchékhov, de Moreira Campos, de Drummond, de Cecília, de Rosa, de Clarice, de García Márquez, de Saramago… De registro, em meus livros.

 

***

 

E encerro a luta de hoje com este singelo testemunho: não encontrei a palavra certa.

No entanto, teimoso, continuarei o meu caminhar, caro leitor, sabendo (ou desconfiando de) que, caso a encontre, o mistério se resolverá e a luz do palco se apagará.

Melhor, então, que a peça continue.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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