Pílulas para o Silêncio (Parte CCLXXV)

 

 

 

 

 

 

(“Morro da Favela”, de Tarsila do Amaral)

 

É um dia de real grandeza, tudo azul

Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos

Um sol de torrar os miolos

Quando pinta em Copacabana

A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba

A caravana do Irajá, o comboio da Penha

Não há barreira que retenha esses estranhos

Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho

A caminho do Jardim de Alá

É o bicho, é o buchicho, é a charanga

Diz que malocam seus facões e adagas

Em sungas estufadas e calções disformes

É, diz que eles têm picas enormes

E seus sacos são granadas

Lá das quebradas da Maré

Com negros torsos nus deixam em polvorosa

A gente ordeira e virtuosa que apela

Pra polícia despachar de volta

O populacho pra favela

Ou pra Benguela, ou pra Guiné

 

Deixem as caravanas dos excluídos invadirem as calçadas e as praias dos instruídos. Estes nunca tiveram educação para entenderem a extradição que geraram na nossa própria nação. Se é que se pode chamar de nação este local em que tanto se preza e prima pela separação. Nós para cá, eles para lá. Nós, cheirosos e belos; eles, fedidos e detestáveis. 

Deixem as caravanas romperem o silêncio da omissão deste domingo sacana, em que até o sol, parece, tem vergonha de, no alto, brilhar. 

Ouçam o batuque que antecede a invasão, homens e mulheres armados de tesão pela vida, apesar da cara feia dos otários que se intitulam herdeiros de tudo. “Samba sobre os pés deles/ batuque nos ouvidos deles/ risadas pelo mau passo deles/ cachaça nos cornos deles…” 

 

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No outro dia, os jornais inventarão manchetes descabidas, narrando fatos que nunca existiram. Lamentos e desmaios de damas do high society, madames que se espantaram com tanta gente forte reunida, apesar da maior parte delas não tirar os olhos dos bagos daqueles indivíduos de picas enormes, em que os hormônios antecedem o falo, em que a sexualidade é imperial e trescala no ar por onde eles passam, passaram ou passarão. 

No dia seguinte, repórteres que não estavam lá, patifes dos grandes grupos de comunicação, explodem comentários cheios de fúria, mas sem jaça, sem credibilidade. Isso porque alguém, do alto do morro, gravou tudo e postou nas redes. Uma invasão ordeira das caravanas brilhando nas ondas do mar, dançando na areia frente aos prédios em que todos dormiam, por preguiça de viverem. 

“Somos da caravana que nos pariu/ filhos do ódio e do amor/ pouco importa se Deus nos abençoou/ pois tudo é marcado pelo senhor…/ Ôoooh… puta que o pariu!” 

— Canta, caravana! Canta quem vem lá! 

 

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Sol, a culpa deve ser do sol

Que bate na moleira, o sol

Que estoura as veias, o suor

Que embaça os olhos e a razão

E essa zoeira dentro da prisão

Crioulos empilhados no porão

De caravelas no alto-mar

Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria

Filha do medo, a raiva é mãe da covardia

Ou doido sou eu que escuto vozes

Não há gente tão insana

Nem caravana do Arará

Não há, não há

Sol, a culpa deve ser do sol

Que bate na moleira, o sol

Que estoura as veias, o suor

Que embaça os olhos e a razão

E essa zoeira dentro da prisão

Crioulos empilhados no porão

De caravelas no alto-mar

Ah, tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria

Filha do medo, a raiva é mãe da covardia

Ou doido sou eu que escuto vozes

Não há gente tão insana

Nem caravana

Nem caravana

Nem caravana do Arará

 

Ao cair da tarde, as caravanas deixaram as areias, e voltaram a subir os morros, a ocuparem as periferias. Enquanto a noite, assustada, fingia enrolar-se no manto da calmaria. 

“A polícia não os tangeu de volta”, reclamam os medrosos. Estes agora falam, depois de se esconderem por debaixo dos lençóis dos seus pavores. Filhos do medo, a omissão é parteira zelosa da esculhambação. O país procria seus fascistas, enquanto os que creem não agem, não se comprometem, não metem seus dedos limpos nos esgotos sujos deste malcriado “paraíso”. 

Não há barreira que retenha esses estranhos… 

— Cala a tua boca, escriba cearense. Tu nunca entenderias quem vem de onde surgimos. Cala a boca, sacana da escrita omissa! Omisso, a embaçar teu verbo no risinho clichê, daqueles que apenas ferem a pele da fera sedenta! Esta, após tal golpe chinfrim, ruge mais forte e rasga as carnes dos pobres que morrem de fome, caravanas de espectros, sem registro oficial e, até hoje, sem nome. 

Sol, a culpa deve ser do sol… 

 

Fonte: trechos em itálico da canção “As caravanas”, de Chico Buarque. 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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