PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXXIX)

                                                                Clauder Arcanjo*

 

 

 

(Igreja Matriz de Santana do Acaraú/CE)

 

Memórias infantes

A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem.

(José Saramago, em As pequenas memórias)

 

Na manhã desta terça, o sol a brilhar adulto e eu a pensar no meu tempo de criança. Lembranças da escola, das brincadeiras na beira do rio, das estripulias por entre o matagal, do banho de bica. Hoje, no filme da memória, tudo traz um sabor mais intenso, parece que a mente, cabreira, seleciona o que deve ser guardado, cultivado e retido.

 

***

 

Confesso que tive dramas, sofri traumas, superei alguns terríveis dissabores. No entanto, com o passar do tempo, se esquece das tragédias, se sublima as dores e, no cadinho das reminiscências, fica depositado tão somente o minério valoroso das excursões infantis.

 

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Meu pai, terno e sereno; minha mãe, confiante e zelosa; meus irmãos: Dedé, Baía, Tito e Cambão. Uma família que, conforme papai propagava, era a sua maior riqueza, o seu melhor patrimônio.

Hoje, décadas depois, vejo-me a cultuar, diuturnamente, esse aprendizado no lar que constituí.

 

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Tardes há, principalmente na hora da sesta, em que me acode, numa espécie de filme na mente, as traquinagens que fazíamos, eu e meu irmão Baía, enquanto nosso velho tentava repousar no quarto ao lado.

Só sossegávamos quando, após alertas seguidos, ouvíamos o rangido dos armadores, a anunciarem que o bom Zequinha perdera a paciência e nos tangeria janela afora, encerrando tamanha bagunça.

 

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— Hoje a minha infância ainda sobrevive na província? — inquire-me a razão.

E a poesia me responde que sim e que não. Sim, se eu olhar e colher o vislumbre do passado na poeira das ruas e no aroma do vento. Não, se quiser recolher, fidedignamente, as cenas que só se projetam no cinema do passado.

 

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Por onde andam todos? Dederardo, Gordinho, Gazumba, Peditão, Gatinho…

Neste julho, saudoso, visitei Licânia e lá os reencontrei. Nenhum deles era mais aquele garoto que, na infância, deixei.

 

***

 

E resolvo seguir por entre as horas, a relembrar vez em quando tais memórias infantes. Se para você isso é mero exercício de fantasia, deixe que eu me iluda com esse tesouro que sempre trago à altura do coração.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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