PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXIV)

Clauder Arcanjo*

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(Pintura “Cristo Crucificado”, de Diego Velázquez)

 

Cinzas

 

Eu caminhei na noite

Entre silêncio e frio

Só uma estrela secreta me guiava

(Sophia de Mello Breyner Andresen, em “A estrela”).

 

Notou seus olhos cinza, e calou-se. Esperaria até o outro dia para pedir perdão a ela por sua falta; bem sabia ele que, com olhos assim, não há remissão.

 

&&&

 

Era quase noite, o passaredo a retornar para os benjamins de Licânia; desta feita, com o chilreio mais contido.

Entrou na igreja matriz. Ao fundo da nave, as imagens cobertas de pano roxo. Costume da Quaresma.

Ajoelhou-se e mergulhou em profundo silêncio. Quando elevou a face para o altar, deu pela presença do sacristão. Este a lhe vigiar com ares de condenação, enquanto lhe cobria, sem penitência, com a fumaça do incenso oriunda do turíbulo de prata.

 

&&&

 

“Mede-se o arrependimento de um cristão pela chaga que ele carrega no peito”, explicava o velho pároco à Dona Salustiana, enquanto se servia do bolo de fubá.

“Eu perdoei a falta do meu Campolino, seu padre, mas preciso ter certeza do remorso dele, entende?”, devolveu Salustiana, a servir-lhe mais um pedaço da iguaria.

Adelmo Campolino, recolhido na alcova, ria baixinho daquela inusitada conversa.

 

&&&

 

Condenado pelas beatas de Licânia, Paulo Queixada entregou-se de vez ao império do Caneco Amassado. Lá residiu, amou e procriou.

Anos depois, a cidade ficou sabendo que ele era o único herdeiro de uma fortuna incalculável. O prefeito, cercado por uma comitiva de notáveis, dirigiu-se então ao meretrício e, fazendo uso da palavra, convocou-o a se juntar aos benfeitores públicos.

— Mas eu sou um pecador!

— Todos nós somos, senhor Queixada. E quem não for que atire a primeira pedra — disse Alcebíades Travoso, benemérito da Congregação das Pias Filhas de Maria.

— Aceito, com uma condição.

E, na tarde seguinte, Paulo Queixada, acompanhado das “meninas” do Caneco Amassado, desfilou em carro aberto, entrando triunfalmente em Licânia, aplaudido pelas beatas, sob os dobres da bandinha municipal A Furiosa.

 

&&&

 

Há pecados que nos glorificam. Há bênçãos que nos amaldiçoam. Há poemas que só nos envergonham.

 

&&&

 

Nem todo santo é de barro, nem todo pau é oco, nem todo elogio é franco. Muito menos todo aforismo tem missão edificante.

 

&&&

 

Seu sorriso era tão triste, tão triste, que, quando feliz, todos choravam no seu entorno.

 

Senhor, dai-me a inocência dos animais

Para que eu possa beber nesta manhã

A harmonia e a força das coisas naturais.

(Sophia de Mello Breyner Andresen, em “Reza da manhã de Maio”).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

Deixe um comentário