PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLVII)

Clauder Arcanjo*

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(Retrato de Lev Tolstói, de Nikolay Nikolayvich)

O autor

 

“Quando o amor à glória é de uma ordem inferior, a reputação, mais que a oportunidade, é cultivada; mas quando se trata de uma paixão pura, a oportunidade é cultivada em nome da reputação.”
(Henry James, em “Robert Louis Stevenson”)

A palavra primeira saiu mascada, como se picada, num esforço grande para marcar a página. Nascida de um parto de suor e esforço.
O escritor, cansado, guardou o caderno. Ao se levantar, deu com o céu marcado pelo voejar dos pássaros, a cantarem por entre as árvores da cidade, num bailado livre e ritmado.

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A palavra segunda despontou quando ele menos esperava. Sentado à beira do rio, a observar a sua imagem difusa no correr das águas, lembrou-se de coisas que nem pensava guardadas.
Procurou no bolso da camisa um pedaço de papel e nele registrou o que a memória lhe soprava. Com pouco mais, percebeu que o rio lhe ditava o escrito. Ou o escrito se fazia parte da corrente?

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A última palavra se vestira de mistério. Nem afeita ao esforço, muito menos ao esforço ou ao suor. Se era ritmo ou rio, isto pouco lhe importava: o escritor, agora, era o seu próprio verbo.
Com os olhos voltados para dentro de si, ele misteriosamente era verbalizado em silêncio. Um silêncio aos demais indecifrável.

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Sonhou com uma história breve. Pela manhã, correu ao encontro de um conto. Nada se lhe revelou.
Na noite seguinte, teve um pesadelo com alguns versos estranhos. Mal rompeu o dia, sentou-se na escrivaninha a tentar um poema, em versos livres. Nem um verso lhe acudiu.
Nesta noite, agora em desistência final, ele soletra um aforismo de dor e desencontros. Quem registrará tal momento?

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Dar-te-ei em dobro o presente que me escondes com teu ódio e tua inveja inconsequentes.

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O prisioneiro deixou a prisão; e, mal dobrou a esquina, já sentiu o bafio abjeto dos homens presos à mesmice da rotina.

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Toma da tua escada e procura subir ao céu que não te coube. A teimosia é a única regalia que restou aos excluídos.

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Nadava em braçadas na maré da decepção, mergulhava na corrente da baía dos iludidos, e hauria o ar advindo da nascente da fantasia. Sem se importar se a sua odisseia era uma saga sem fim.

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Frente à tabacaria, um Pessoa ia e vinha. Num sábado distante, Vinicius versejava, porque era sábado. Hoje, na terra dos verdes mares bravios, Alencar, minha Iracema reclama do meu silêncio outonal.

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A moda passou, e o escrevinhador, que se guiara por ela, ruminou seu desgosto, enquanto sentia suas páginas, concebidas como ternas e perpétuas, sumária e definitivamente esquecidas.

“Essa há de ser a moda que não acaba. Ou caminhemos para a perfeição deliciosa e terna, ou não façamos mais que ruminar, perpétuo camelo, o mesmo jantar de todas as idades, a moda de morrer é a mesma… Mas isto é lúgubre, e a primeira das condições do meu ofício é deitar fora as melancolias, mormente em dia de carnaval.”
(Machado de Assis, em Crônicas selecionadas)

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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