PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLVI)

Clauder Arcanjo

 

(Pintura de Alfredo Vieira)

 

 

 

 

 

 

 

Cidades

 

“A vida se impõe pela energia bruta, como o trovão inarticulado; a arte captura o ouvido, em meio a barulhos mais altos da experiência, como uma melodia artificialmente criada por um músico discreto.”

(Robert Louis Stevenson, em “Um humilde protesto”)

 

A primeira cidade foi edificada sobre fundações de pau a pique. Como palafitas, ela estendia-se por sobre o vale fecundo dos rios, a serpentear léguas e mais léguas. Seus moradores, amigos das árvores, endeusavam as sementeiras dos grandes troncos. E, quando algum deles morria, era enterrado em urnas nobres, sarcófagos de madeira de lei.

 

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A segunda cidade erigiu-se sobre pedras. Com seus castelos e catedrais, ela despontava no firmamento, a furar o véu das nuvens. Seus habitantes, discípulos do altíssimo, louvavam os construtores das mais ousadas torres. Se qualquer deles finasse, seus entes oravam que fosse elevado aos céus, passando a morar na eternidade, no pico mais inacessível.

 

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A terceira cidade (dela só há vestígios na memória de alguns eleitos) não tinha fundação, nem de madeira nem de pedras. As residências eram lares de sonhos, situadas no etéreo paralelo da utopia, na altitude incomum das bem-aventuranças. Nela não havia ritos de despedidas, pois lá imperava o reinado da infinita perpetuidade do aqui-agora, sempre.

 

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Sabe aquela província que decantas em teus poemas, poeta? Ela só existe dentro de ti, cuida de preservá-la. E não caias na besteira de querer revisitá-la, ela encobrirá a tua lira com as odes da decepção.

 

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Dignifica teu chão com o respeito do teu silêncio. Toda palavra é uma forma de traição.

 

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O badalar do sino da cidadezinha manchava o horizonte com o bronze da saudade.

 

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Há uma Licânia na história, há outra na lembrança. Até hoje, desconfio, a relembrada é a mais verdadeira.

 

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Na funda noite, no abandono do sono, renasce a vida (julgada perdida) dos nossos confins.

 

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Hoje, todo rio para mim é um fingidor, pois nada neles lembra as águas da minha infância.

 

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Quis ser metropolitano: copiei atitudes, imitei gestos, mudei até de sotaque. Hoje, Licânia é um retrato na parede, e eu… um indigno.

 

“É sem dúvida incomparavelmente mais nobre e proveitoso quando quatro pessoas se sentam para a audição de um quarteto do que quando se sentam para uma partida de baralho.”

(Arthur Schopenhauer, em Metafísica do belo)

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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