PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLIV)

                                                                                                      Clauder Arcanjo*

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(Pintura “O Fantasma de Vermeer de Delft”, de Salvador Dalí)

 

“Nunca esquecerei o silêncio noturno que me tirou por toda a eternidade o desejo de viver.”

(Elie Wiesel, em A noite)

Sem que o tempo pedisse permissão, se é que ele algum dia o fez, ela voltou para os braços dele, após sofrer como um desgraçado devido a sua ausência. Ela surgiu-lhe em sonhos, claro. Mas isso lhe era o bastante. Cão faminto uiva de satisfação pela dádiva de qualquer osso.

Quando o dia amanhecia, ele praguejava contra o sol. Irritado, torcia para que as horas corressem depressa, e a noite logo se anunciasse. Pois, sabia, o luar lhe traria o fantasma dela de volta. Se tinha medo? Não, ao contrário, abria-lhe os braços para receber aquele vulto esmaecido, enquanto sorria, loucamente, por senti-la tão junto de si.

Dois meses depois, ele foi recolhido ao manicômio público.

E assim, nos dias de hoje, quando a campainha anuncia o momento de todos se recolherem aos seus leitos, ele pula, vibra, ri, gargalha… e propaga, alucinadamente: “Ela é minha, minha, minha. Eu serei só dela, dela, dela, dela… Adoro a minha amada, amada, amada, amada…”.

E os outros internos a taparem os ouvidos, incomodados com os afagos e os uivos de paixão daquele “louco varrido” pela madrugada infinda.

 

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O pior fantasma é aquele que nasce do coito com a desonra, fruto da conjunção do interesse com a má-fé. Dizem que tal espectro não sossega nunca, a relembrar, dia e noite, que aquele “maldito” lhe entregou a vida.

 

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Um fantasma de Licânia gritou, noite última:

“Se saio de dia não me reconhecem. Falo pela boca dos outros, obro pelas mãos dos estranhos, caminho pelos pés dos condenados. Sabe aquela vez em que um cego gritou que ‘vira’ um brilho estranho no alto do Serrote da Rola?! Fui eu, meu caro, que lhe apresentei o arco-íris em pensamento. E aquela tarde em que um desvalido cantou, pelos becos e vielas de Licânia, que o fim estaria próximo? Lembra? Sim, eu estava com os pensamentos voltados para o Apocalipse, e sussurrei nos ouvidos do desgraçado algumas passagens mais fortes do Livro Sagrado. Agora aqui estou, correndo pelas ruas escuras a anunciar que sou um fantasma. O maior e mais temível de Licânia, e ninguém se espanta; ninguém sequer faz o sinal da cruz, e até as crianças me convidam para brincar: ‘Vem, seu fantasma! Entre na roda, e vamos nos divertir!’ Não, exijo a minha condição de filho das trevas. Quero ver o terror nos olhos dos licanienses. Eu exijo!”

O sacristão, depois da missa, pediu ao padre Araquento que abençoasse o velho cemitério da cidade. Foi lá que o tal fantasma se recolheu, chorando e se lamentando por ninguém o respeitar naquele fim de mundo.

 

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Hoje eu pedirei o teu silêncio; envolto na placidez dos simples, marcado pela paz dos inocentes.

Pouco importa se os outros gritarem. Teu silêncio me cobrirá com a graça de ouvidos moucos ao que me chegar de outrem.

 

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Manuela Salustiana nasceu com um olho verde e outro cinza. Quando conheceu Sebastião Danboro, seu primeiro pretendente, e percebeu nele apenas a ânsia da carne e a volúpia do corpo, fechou para ele o olhar esverdeado, pois o sabia homem das cinzas. No entanto, ao dançar com Antonino Cortes, entregou-se de corpo e alma àquele homem. Com os olhos fechados e o coração em festa.

 

“Vejo a tolice aliada à patifaria juntas formarem o espírito público e as opiniões públicas.”

(William Hazlitt, em “Sobre o prazer de odiar”)

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

 

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