Pílulas para o Silêncio (Parte CCLI)

Clauder Arcanjo*

(Pintura “A Mulher de Cabelos Verdes”, de Anita Malfatti)

O tempo

“Igualmente, não contribui pouco ao flagelo de nossa existência que o tempo urja, não nos deixe tomar fôlego e persiga a todos como um capataz com a chibata. – Os únicos que ele não acossa são aqueles que entregou ao tédio.”
(Arthur Schopenhauer, em Sobre o sofrimento do mundo & outros ensaios)

Abriu a porta, observou as ferramentas dispostas sobre a mesa tosca, tendo ao lado todo o material bruto aguardando o seu labor. Sentiu-se, então, invadido por uma pasmaceira, a tocar suas mãos, a percorrer seus músculos, a contaminar-lhe o juízo.
Virou-se e saiu pela mesma porta pela qual entrara. Lá fora, sentado na calçada, o Tédio. Entreolharam-se, como se se entendessem sem o uso das palavras.
Deram-se as mãos e saíram, sem urgência, a vagarem pelas ruas calmas e vazias.

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O Tempo lhe fora tão exigente que não crescera direito, não amadurecera por completo, não aprendera tudo o que havia para lhe ser ensinado. E, ao fim de tudo, morrera prematuramente.
E concluiu, no instante final: “O Tempo não brincou comigo.”

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Um pessimista de Licânia rezingou aos presentes:
“Disseram-nos que hoje choveria. Qual nada!, esta terra não merece o frescor da chuva, muito menos o verde nunca mais cobrirá este chão tão imprestável. Aqui é terra para se viver sob o fogo do sol inclemente, sem direito a sombra nem valimento. O quê?!, o nascente está se armando com nuvens pesadas!? Então, Licânia, que venha muita água, um dilúvio, a fim de lavar os pecados deste nosso povinho tão besta. E, com licença, que eu vou logo para casa. Deus me livre de pegar um resfriado.”

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Sonhou com um poema lírico, entre sentimentos de paixão e gozo. Ao acordar, tomou uma xícara de café puro e foi cuidar de limpar o quintal. Ao observar o arrulho dos pombos, lembrou-se do sonho.
“Ai, lasquei minha canela!”; praguejou. Simplesmente, o lirismo roubara a sua atenção, e a enxada golpeara-lhe, com realismo e força, a perna esquerda.

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“Tomai e bebei o cálice da vossa aflição. E que a vossa passagem por este vale de sofrimentos vos seja breve, pobres frutos de Deus!”; assim orou o pároco de Licânia, quando da bênção aos fiéis após aquela manhã tão fatídica.

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“Dona Cleomar, a senhora ainda tem fé no tempo?”; perguntou a garbosa Safira à velha vizinha.
“Sim, tenho tanta fé nele quanto em Deus no Céu, minha querida!”; respondeu-lhe, irritada.
“Mas eu… eu sou agnóstica!”; devolveu-lhe a bela Safira, passando as mãos nas suas ancas esculturais.
“Bom, minha filha. Com o tempo, e a velhice, o corpo perde a forma e se vai… se agarrando a Deus”; completou Dona Cleomar, murmurando, baixinho, uma praga diante de tanta beleza.

“A tradição é uma barreira sólida de passado em torno do presente: aquele que deseja seguir na direção do futuro deve atravessá-la, pois a natureza não permite descansos ao conhecimento.”
(Stefan Zweig, em Dostoiévski: vida e obra)

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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