PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLCIII)

Clauder Arcanjo

A vingança acaciana

 

Dizem alguns que a minha relação com Companheiro Acácio é mais uma intriga entre gato e rato do que um jogo de contrapontos envolvendo dialéticos amigos.

Um filósofo conhecido meu, e desafeto de Acácio, alega, por sua vez, que a nossa convivência é um caso clínico freudiano. Nele impera a histeria, sequenciada por uma onda de consciente repressão. Conclui, o nobre pensador, que os nossos embates se dão dentro de uma relação inconsciente de culpa, a mencionar, como fundamento, as piadas, o humor e os gracejos em cada situação em que nos enredamos.

Depois disso, ao longo de semanas, mergulhei no universo da psicanálise e, quanto mais estudava, mais concluía que Companheiro Acácio deveria se submeter à hipnose clínica, como forma de superar seus inumeráveis traumas reprimidos.

Sábado passado, caro leitor, a fim de espairecer, pois já via complexo de Édipo e neuroses outras em tudo o que me cercava, resolvi largar a leitura psicanalítica e dar uma passeada pelo shopping.

Chegando lá, vaguei a esmo, ora observando as vitrinas, ora captando o vozerio dos transeuntes.

— Você não resiste a uma semana consigo mesmo — ouvi.

Ao me virar, adivinhe quem estava às minhas costas? Sim, você acertou, atento leitor, o Companheiro Acácio. Trajava uma bermuda longa alaranjada, um camisão com estampas floridas e um boné esportivo, sem falar no tênis da moda. Nunca o vira tão casual, como dizem os ingleses.

— Companheiro! Que prazer! Tenho novidades, vamos tomar um café.

E arrastei-o para uma cafeteria próxima. Ao nos sentarmos, mais do que depressa fiz o nosso costumeiro pedido e comecei a interpelá-lo:

— Com o que você anda a sonhar, Acácio?

Ele cofiou o minúsculo bigode, fez pose de Fernando Pessoa e se pôs a recitar:

— “Que enigma havia em teu seio/ Que só gênios concebia?/ Que arcanjo teus sonhos veio/ Velar, maternos, um dia?”

Confesso que Acácio ao declamar é sempre causa de alumbramento meu. Nesse caso, sob as bênçãos da Princesa do Santo Gral, “D. Filipa de Lencastre”, em Mensagem.

Com pouco mais, refeito daquela inserção poética, ataquei-o novamente, psicanaliticamente falando:

— Acácio, você algum dia sentiu uma pulsão de dar fim ao seu pai?

Ele me pôs um olhar de fúria; porém antes mastigou as primeiras injúrias que lhe acorreram à língua.

Por precaução, afastei-me, enquanto argumentava, em tom professoral:

— Fique à vontade, Acácio, pode se abrir comigo. Falar faz parte da terapia e resistir não o ajudará em nada. Aliás, em um dos tomos que li recentemente, os terapeutas defendem que, à medida que a resistência cresce, a deformação relativa ao que se procura também aumenta. Graças a isso, o esquecimento seria consciente sem deformação. Nisso, se a deformação for algo menor, fica mais fácil entender o que está sublimado, esquecido. Não sei se fui claro.

— …

Quando me vejo diante das reticências acacianas, o melhor é procurar a porta mais próxima.

Não sei como, leitor, reuni coragem para prosseguir:

— Se você me permitir, Acácio, poderei, freudianamente amparado, conectar alguns sintomas mórbidos seus com a sua vida erótica reprimida. Pois, de acordo com o mestre austríaco, a história erótica e as repressões a ela desencadeiam quadros patológicos preocupantes. Contudo é difícil definir um tratamento devido à dificuldade dos pacientes em se abrirem sobre a vida sexual.

Recuei mais alguns passos.

Em seguida, fingindo interesse na propaganda de uma loja próxima, li um anúncio, em grandes letras. Nele, a promoção “Outubro Rosa”: “Hoje, desconto especial nas depilações a laser”.

 

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Senti quando Acácio se aproximou de mim, soletrando a sua vingança:

— In-te-res-sa-do na de-pi-la-ção a laser, Clauder Arcanjo?

Calei-me, sabia-me na mira acaciana. Em tal situação, amigo leitor, o melhor é não se mover, fingir-se de morto, pois pressentia chumbo pesado.

Companheiro rompeu o silêncio:

— Seus olhos não saem da parte referente à “depilação a laser perianal”.

O sangue a ferver dentro de mim, as unhas a entrarem na carne das mãos, um calor a assomar à minha face, antes lívida, e… um urro animal escapou do meu inconsciente:

— Fi-lho da mãããããããe!

Todos se voltaram para nós, enquanto Acácio, dissimulado, advertia os presentes:

— Melhor chamar o Samu. O caso é grave, gravíssimo. Os psiquiatras atribuem tais crises a uma tara reprimida inconfessa.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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