PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLCI)

Clauder Arcanjo*

 

A bengala de Acácio

Para o amigo Marcus Saraiva

 

Encontrei semana passada o Companheiro Acácio atravessando a rua e percebi-lhe o caminhar lento. Diria até com passos indecisos, quase manco.

Ele, ao me ver, recitou — com um travo de fastio nos olhos baixos e numa eloquência deficiente e melancólica — o poema “À bengala”, de José Paulo Paes:

 

Contigo me faço

pastor do rebanho

de meus próprios passos.

 

Abracei-o fortemente, apesar da intromissão da bengala entre nós:

— Contenha-se, Clauder Arcanjo, estamos em plena via pública. E, além do mais, ando a sofrer com um achaque na coluna faz dias.

Depois disso entramos num restaurante logo na esquina. Sentamo-nos, pedi que nos servissem dois cafés fortes e… perdemo-nos em divagações mil. Visitamos o submundo da política partidária, sobrevoamos os céus da geopolítica mundial, para, em seguida, passarmos, a trotes rápidos, pelo terreno minado da sociologia de costumes, sem mencionar o mergulho nas ondas dantescas do mar da religiosidade conservadora que se espraia frente a olhos cegos (e omissos).

Minutos depois, sem nos darmos conta, vimo-nos calados e cabisbaixos. Não saberia dizer se devido às temáticas abordadas ou ao costume mútuo de nos cobrirmos com o manto do silêncio para reencontrarmo-nos com o próprio eu.

Um quarto de hora de quietude é pouco; dois, o suficiente, já três é demais.

— E qual o bicho que deu hoje?

— O cachorro — disparou Acácio, ladino.

E o riso nos fez companhia. Solicitei mais uma rodada de café e, ao sermos servidos, pus-me de pé, solicitando um brinde:

— À vida!

Acácio, empolgado, ergueu-se depressa e a coluna conteve-lhe o ímpeto.

— Ui… Onde está a minha bengala? — reclamou Companheiro Acácio, lívido.

— A idade é uma m… — provoquei.

— É a mãe! — devolveu-me.

Fui salvo do ataque de impropérios por duas amigas que entraram no restaurante:

— Clauder Arcanjo e Acácio por aqui? Que coincidência, estávamos justamente falando há pouco como vocês se parecem. E como é bonita essa amizade — disse a mais nova (e mais bela).

Aquilo foi o suficiente para conter o assalto de artilharia verborrágica do Companheiro.

As damas sentaram-se à mesa, e a conversa ganhou um novo brilho. Acácio, lépido e atencioso, diria até fidalgo e primaveril, manteve o controle do bate-papo, fazendo-se o centro das atenções das recém-chegadas.

Eu, relegado a segundo plano, tentava entrar na prosa, mas Acácio, sem que elas percebessem, jogava-me para o escanteio.

Impotente me encontrava, melancólico fiquei. Nem a minha tristeza chamou a atenção dos presentes. Sob o jugo de uma cruel consternação, bem sabia que, a partir daquele instante, Acácio me ignoraria. De início, mastiguei minhas dúvidas, estas, na minha peculiar visão, consolo verdadeiro dos homens sábios. E, de repente, recitei:

 

Se houver abandono em meus braços,

o silêncio será a flor do meu jardim.

 

A mais velha se voltou para minha direção, a indagar-me:

— São versos seus? Que coisa tocante!

Antes que eu articulasse um sequer monossílabo, Acácio intrometeu-se:

— Clauder Arcanjo adora recitar epigramas de minha lavra, senhorita. Confesso que esse não é um dos meus melhores poemetos. Mas ele gosta de me provocar recitando aqueles em que não fui tão feliz. Coisa de gente invejosa!

Quis reagir, não pude. Quis protestar, senti que não me ouviriam. Estavam as duas encantadas com o prosear acaciano. Se Acácio lhes declarasse que sua poética rivalizava com a de Dante, elas, crédulas, não duvidariam.

“Este sofrimento me tornará melhor?”, indaguei-me. E esta dramática pergunta se interpôs entre mim e Acácio, com o silêncio a nos encobrir. Silêncio este apenas rompido por um brado que assomou, de forma inesperada, dos meus lábios furiosos:

— Às favas a remissão, Clauder Arcanjo! Por acaso julgas que andas a expiar pelas falhas e omissões desse cabotino?

As risadas mergulharam numa aura de espanto.

— Às vezes tenho a impressão de que há como se um misto de lucidez e desencanto em seu olhar; ou seria, Clauder, apenas cegueira e sono? — assacou-me companheiro, enquanto deixava escapar um riso de escárnio pela comissura dos lábios.

As moçoilas presentes riram da provocação acaciana, e eu mergulhei na timidez, com a face rubra de vergonha pelo contragolpe inesperado.

Aquilo mexeu com os meus brios e percebi que a nossa dialética caminhava para a baixaria. Respirei, paguei a conta e me despedi.

— Acácio, preciso ir, você está em boa companhia. Mas não se esqueça de cuidar de sua coluna, a velhice, amigo, bateu há anos à sua porta. Que o diga a sua incontinência urinária!

Acácio aproximou-se; no entanto, eu, mais do que depressa, disparei na direção da saída. À distância, ainda ouvi:

— Tenho comigo apenas uma certeza, e ela me basta: vou lhe dar umas boas bengaladas, seu falso arcanjo!

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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