PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCL)

 

 

Pintura “Favela” de Burle Marx

“Evocar em nós todos os sentimentos possíveis, penetrar a nossa alma de todos os conteúdos vitais, realizar todos estes momentos interiores por meio de uma realidade exterior que da realidade só tem a aparência, eis no que consiste o particular poder, o poder por excelência da arte.”

(G. W. F. Hegel, em Curso de estética: o belo na arte)

 

A Arte abriu a porteira, pôs seus pés de brilho no alpendre da casa e perguntou pelas horas, ela que nunca ligava para o correr do tempo.

Mal entrou, reparou nos olhos da janela e deu pela cumeeira do casebre vizinho. Este, abandonado e encoberto pelo mato, era um arremedo de memória em total abandono, sobressaindo-se apenas pelo brilho dourado do cair da tarde. A Arte chorou devido àquela beleza doída, enquanto o dono da casa lhe chamava a atenção para reparar num juazeiro copado.

— Só a natureza não me cativa — argumentou a Arte.

 

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Não vá pensando que a Arte lhe aguarda na esquina seguinte, sentada e pronta para lhe convidar para um jantar. A Arte, quase sempre, se esconde na mansarda mais infecta, em que aqueles que lá adentram haverão de se entregar ao sacrifício mais inimaginável, a fim de se habilitarem para o sabá dos proscritos.

 

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Um falsário de Licânia reclamou ao juiz:

“Daqui quero distância, senhor juiz. Tão logo vossa excelência me libere, acredite, arribarei desta terra. Imagine só, ontem tentei no Mercado passar para frente um relógio que me foi vendido por um cigano; cópia feita com esmero, difícil até de imaginar. Pois bem, o cabra me olhou, arregalou os olhos curiosos e me disse que já tinha em casa dois daquele modelo. Se eu quisesse, ele faria negócio comigo. Isso não pode ser, entende! A gente ganha o mundo para honrar uns cobres, passar pra frente o que nos passaram antes, e olhe só: se chega atrasado. Não dá, sinceramente, não dá. Outra coisa, senhor juiz, tentei empurrar, num feirante com a boca cheia de ouro, a posse de uma mula manca, e o comerciante, sem nem prestar atenção na minha montaria, foi logo jogando nas minhas fuças: ‘Terra de malandro detesta acoitar sabido’. E soltou uma risada grossa e esticada, e mandou o seu auxiliar me servir uma pinga braba. Coitado de mim que aceitei aquela dose!, estou com a úlcera em fogo. Se tenho mais algo a declarar?! Não, quero partir, daqui não aceito nem socorro. Ô lugarzinho para ter gente sabida!”

 

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A chuva fina caiu no mar; antes de mergulhar nas ondas, ela se vestiu com o manto de um arco-íris. Como testemunhas daquela beleza, um barco a vela sem rumo e dois golfinhos ariscos.

 

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Pesadelo de marinheiro é procela; de carpinteiro é invasão de cupins; de pintor é tela perdida; e de escritor… é a distinção de um prêmio literário ao escriba desafeto.

 

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“Madrinha, a senhora acredita na palavra dos poetas?”; perguntou a jovem Maria para dona Adalgisa.

“Depende, minha afilhada!”; argumentou a madrinha.

“Depende do quê?”; inquiriu a jovem donzela.

“Bom, se a poesia for carregada de promessas e de deixar o coração da gente disparado e em fogo, melhor manter distância, muita distância, do versejador. Mas se ela for daquelas mansinhas e de passo miúdo, se achegando como quem não quer nada… Ai, meu deus!, melhor nem confiar. Valha-se com a Virgem Maria!”; arrepiou-se a velha senhora Adalgisa, a abanar-se, como se supliciada.

 

O dever do poeta

Consiste em superar a página em branco

Duvido que isto seja possível.

 

(Nicanor Parra, em Só para maiores de cem anos)

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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