PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCII) – Clauder Arcanjo

Foto: Isolamento, de Marcão Melo.

No isolamento, senti a saudade do ar livre, da conversa no alpendre, do convívio com a meninada.

Nem imagino quanto tempo ficarei neste quarto. O tamborete encostado junto à porta é a maior proximidade que me deixam ficar de tudo lá fora.

Há dias não durmo direito. A saudade rói minha alegria e me põe um gosto de ferrugem na boca.

Não sei se insistirão para que eu permaneça aqui. A receber água e comida pela janela, feito animal na ceva. Dizem que é pelo bem de todos. Mas, vou avisando, não podem exagerar: isso não é bom para mim. Pode até ser o meu fim.

No céu, pelas frestas das telhas vãs, um céu limpo e festivo. Deus nunca reparou nos meus problemas.

 

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Na noite quente, a cabeça revoltada. Súbito, uma decisão.

— Como nada me ocorre… é hora de me aposentar.

Guardei os cadernos, recolhi os lápis dispostos sobre a mesa, fechei os dicionários e fui me deitar.

Na madrugada alta, sonhei com uma história tão intensa, que saltei da cama e corri para o meu birô.

— Onde guardei tudo, meu Pai?! — esbravejei.

A minha esposa, ao ouvir o meu desabafo, murmurou:

— Antônio, meu filho, larga esta vida de escritor! Isso ainda vai acabar te enlouquecendo!

 

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Noélia mascou uma pele de fumo velho na boca murcha, ajustou a saia rodada, bateu com as sandálias na soleira na porta e entrou.

No fundo do quarto, uma rede puída. Dentro dela, um corpo esquálido a emitir grunhidos de dor.

— Levanta daí, Gumercindo! A mulher da foice adora levar na frente aqueles que se entregam às agruras do destino.

 

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Dobrou a esquina e ficou à frente da abandonada mansão dos Batistas. A fachada invadida pelas heras, estas davam-lhe uma coloração estranha. As portas trancadas e isoladas com traves de madeira e pregos caibrais.

A lembrança do antigo fausto daquela família trouxe-lhe um aperto ao peito.

Como era domingo, a cidade ainda dormia. Abaixou-se próximo à porta de entrada, e, quase de joelhos, quis chamar pelo pequeno Benedito, companheiro fiel das brincadeiras nas ribanceiras do Acaraú.

Quando ia se levantar, uma revoada de pardais marcou os céus de Licânia; e, sem se dar conta, ele esbravejou:

— Saia daqui, cambada de invasores!… Licânia não é terra de vocês.

 

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Ao ler Nietzsche, invocava a condição de dono do mundo. Ao reler Cervantes, celebrava a bela loucura dos livros. Ao caminhar, a vau, nas letras mortas-vivas de Dostoiévski, ressuscitava, a alma em carne viva, para enfrentar o inclemente destino humano.

 

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Não se há de celebrar o homem, em sua plenitude, quem ficar mourejando apenas junto ao enganoso pântano da alegria.

 

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Doninha se entregou ao amor de Gaitilho, devido à força dos seus verdes olhos ciganos.

Quando ele resolveu arribar de Licânia, avisando que ninguém era dono do seu destino, Doninha sentiu no ventre que ficaria acompanhada naquele abandono.

 

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Platino entrou para tão dentro de si que, quando pôs a cara de fora, desconheceu a si e ao mundo que o rodeava:

— Que coisa esquisita!

 

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Nobreza lastreada em jogos de azar ou em herança sempre se transforma em mendicância na geração seguinte.

 

Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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