PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXXXVIII)

 

(Pintura “A Leitura”, de Renoir)

 

 

De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu
com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é
espírito.

(Nietzsche, em Assim falava Zaratustra)

 

Vago pelo interior da minha biblioteca, perdido entre lembranças
literárias: passagens dispersas de obras consagradas.
O compromisso da página semanal me chama à escrivaninha, mas a
inspiração não atende aos meus rogos. Suplico aos deuses da literatura. Todos
me fazem ouvidos moucos. Nada, nada; tão somente pedaços de frases de
outros escritores (Pedro Nava, Manuel Bandeira, Machado de Assis, Cecília
Meireles, Cervantes, Molière) enrolados e emaranhados num novelo confuso:
sem sentido, ponta ou siso.
Abro a janela e um pardal silente cata escolhos no pátio. Assim como
eu, deve sofrer de prisão de canto. Para mim, o cantar de um pássaro é a sua

crônica diária, aves de província. Não à toa que os grandes cronistas são
saudados como sabiás.
Volto para o meu posto de observador de escritório, fecho os olhos e
percorro os desvãos da memória recente: nenhum ato ou fato digno de registro.
Melhor, digno de uma prosa poética.
Alguém bate à porta:
— Clauder Arcanjo?! Ouvindo estrelas?
A voz do Companheiro Acácio me traz de volta ao cotidiano.
— Bem-vindo, Acácio. Entre, a casa é sua.
Mal abro a porta, ele já dispara:
— Se eu fosse você, Arcanjo, aposentaria a pena e me recolheria à
condição de leitor. Vejamos: Balzac, Pirandello, Proust, Dickens, Thomas
Mann, Tolstói, Eça… Nenhuma história sua rivaliza, nem chega perto de uma
anotação desses mestres.
Levanto-me e resolvo enfrentá-lo:
— E quem aqui pediu a sua opinião, seu filho de…
Arregala os olhos negros, ajusta os óculos e, sob as vestes falsas da
humildade, ele contém a minha fúria:
— Senhor Clauder Arcanjo, tenha modos! Não vá dizer nada de que
possa se arrepender depois!
Nesse exato momento minha Biscuí entra e, com a sua voz conciliadora,
põe panos quentes no nosso embate:
— Clauder e Acácio, nunca vi tão grandes amigos como vocês. No
entanto, nos últimos meses, não dividem um instante sequer de paz.
— O problema, doutora, é que o seu marido é um tremendo…
— … é um tremendo parceiro seu. Respeita-o, lê tudo que você sugere,
zela por todos os seus conselhos, busca ao máximo alcançar as metas que
você, Acácio, estabelece para ele — completa Biscuí, deixando o Companheiro
a caçar palavras, a mastigar incômodas certezas.
— O problema, minha filha, é que este homem nasceu para me tirar do
sério, para…
— … para tornar você um escritor mais atento, menos preso aos
modismos, mais afeito à leitura e releitura dos clássicos, mais comprometido
em fugir dos lugares-comuns que infestam a literatura contemporânea. Em

resumo, ele é o melhor personagem seu — alerta Luzia, deixando-me na corda
do sem jeito. Mudo e confuso.
Biscuí se aproxima de mim, beija-me a face, enquanto pede:
— Sentem-se e escrevam juntos a crônica do domingo. Os leitores estão
à espera do que brotará da usina literária de vocês. Enquanto isso, permitam-
me, vou preparar um café.
E eis que a página nasce naquela tarde azul, numa placidez nunca vista
até então no convívio nosso.

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-
grandense de Letras.

 

Deixe um comentário