PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXXXVII)

Clauder Arcanjo*

(Pintura “Mulheres taitianas na praia”, de Paul Gaughin)

 

Desprezo acaciano

 

O berço oscila num abismo, e o senso comum nos diz que nossa existência não é senão uma fresta de luz entre duas eternidades de escuridão.

(Vladimir Nabokov, em Fala, Memória)

 

Volto para casa. Cansado e com o pensamento à distância, nem dou pela presença do Companheiro Acácio na sala. Antes de entrar no escritório, a repreensão:

— Bom dia.

Naquele bom-dia, caro leitor, o visgo da incompreensão quanto ao meu estado. Digo isso pelo tom irônico e pelas sílabas escandidas. Um furor que beirava à fúria.

Paro, conto até trinta e devolvo:

— Bom dia. E nada mais. Hoje não estou para digressões, seu Acácio.

Não sei se pelo tom ácido, ou pelo simples fato de me conhecer tão bem, Acácio recua do embate e me deixa em paz. Por meia hora.

Decorrido esse tempo, eis que ele surge no umbral da porta: de óculos, bigode aparado, a calvície avançada, mas bem cuidada. E com um sorriso enigmático, indecifrável. Finjo não o ver. Aquele pouco-caso, amigo leitor, não o demoveu do seu intento.

Senta-se à minha frente, ajusta seus óculos, passa o dedo indicador direito sobre o bigode e, sem pressa, abre o seu exemplar surrado de Fala, Memória, de Vladimir Nabokov. Percebo que ele mergulha na leitura, como se eu não existisse.

Companheiro sabe, como poucos, me tirar do sério. Dê-me uma carrada de impropérios, mas não me sirva um grama de indiferença.

— Alguma passagem em especial neste Nabokov, Acácio? — assunto-o.

Silêncio acaciano.

Minutos depois ele ergue a vista: seu modo mais intenso de divagar e inquirir o mundo.

— Se somos uma fresta de luz, como fazer para tal luminosidade se ampliar? — filosofa.

Sem esperar resposta, levanta-se e sai com seu deambular metafísico. Como se a tanger todas as filosofias na frente dos seus passos.

Saio em sua direção. Mal entro na sala, disparo:

— O que tanto o aflige?

Ele dirige-me aquele olhar acaciano. Não, não seria capaz de descrevê-lo a contento: um quê de escárnio, uma porção de ciúme, conjugada com um naco considerável de displicência. Abandona Nabokov sobre a mesa e se dirige à saída. Sem esperar qualquer reação minha, declara:

— O pior e mais letal veneno é o desprezo. Sim, o desprezo.

E, em pânico, corro ao seu encontro:

— Volte aqui, Companheiro. Não se trata disso. Volte aqui!

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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