PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXXVI)

                                                                                                                                                                              Clauder Arcanjo*

                                                                                 

 

Confidências a Marly de Oliveira

Pensei: o tempo nem sempre

nos dispara sua flecha,

retido fica no olhar

da poeira ou do animal

que se esconde sob a poeira,

pronta a atacar quem a toca,

embora não houvesse toca

por perto, fosse tudo poeira.

 

Marly, havia uma casa em Cachoeiro de Itapemirim, outra em Campos, uma outra em Brasília para, somente depois, pendurada no varal da memória, uma morada de palavras, retida no olhar do seu silêncio, polvilhado pela poeira de tantas lembranças. No jardim, “sua linguagem /fechada circundada de terra, /com vocabulário enxuto /de árvores grama capim.”

 

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Sentar-se ao pé de uma cruz,

que antes foi árvore verde,

esperando a união com a perfeição,

ao deus distante e encoberto

pedindo que se descubra,

que uma tal pena de espera,

disse o poeta, não se cura

senão com a presença e a figura.

           Teu lavor de esteta, Marly, unindo a descoberta e o esmero, sempre buscou a perfeição. Numa percuciente batalha, pouco se importando se a perderias ou não. Hoje, revisitando teus versos, deparo-me com “esse pungir /da memória que insiste /sob a palha translúcida do vivo/ presente.”

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Embora seja o que não dissolve

como um cacto real, sem aspereza.

Assim o amor real é como um cacto,

          Marly, a teimar em resistir, a despeito do avaro butim da realidade, como se o amor fosse indiferente à leveza, à delicadeza de um instante irreal, que se dissolve rápido, tão sem freio. “E é tão maior o amor quando se alcança /ultrapassá-lo na desesperança.”

Ficarei aqui, calado, na ilusão de que prescindo desse instante indecifrável. “Esquecer que preciso de ti, /como outros precisam de água, /leite, limão bravo, enquanto /vou ficando de lado, /como um feixe de lenha, um punhado /de rúculas ou tomates.”

 

E sem ser água tudo dessedenta,

e é quase um fogo essa água toda lenta,

água não água, essa água consistente,

a que se cristaliza numa gema,

numa gema que fosse toda quente.

 

A gema que é geena e carma. Terra, fruto, promissão e condenação. Numa febre que glorifica, Marly, ao tempo que nos torna lenha para a própria expiação.

Não interessa “… o que se entende ou faz, /naquela distração ditosa e vaga /de quem passeia silencioso num cais, /sem pensar em mistério ou nunca mais.”

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um silêncio que fosse uma cascata,

mas de que o próprio fogo fosse o centro

e de que o próprio fogo fosse a água.

          Partirei logo mais à cata de novas fontes (“porque, já dizia Adorno, /a arte fácil não é séria”), apesar de sabê-las no fosso do meu próprio mistério: fogo e água como cerne de uma silente angústia de viver. E levarei comigo alguns versos teus, Marly: “… a verdade /abrindo os olhos no silêncio, /já que entre mim e ti há o oceano /do que não sabes, do que não sei, /e o que escrevo não passa de invenção…”

 

O problema é a luta

para que não seja vã a palavra,

o enunciado que acorda

aquele que adormece

e nem vê o tempo passar,

a vida passar,

sem ter plantado um grão sequer

para a fome do outro,

sem conferir

um sentido àquilo que nem

se conhece e não obstante.

 

Fonte: Um feixe de rúculas, de Marly de Oliveira (São Paulo: Editora Unesp, 2023).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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