PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXXV)

Clauder Arcanjo*

 

O Retorno do Filho Pródigo Parábola Bíblica Pintura de Bartolomé Esteban  Murillo na Tela em Vários Tamanhos (55 cm X 50 cm tamanho da imagem)

(Pintura “Retorno do filho pródigo”, de Bartolomé Esteban Murillo)

 

Confidências a Acácio

 

          Observo a madrugada,

          e ela me traz o visgo do abandono.

 

Hoje, quando o anoitecer cheira a tristeza e meus ouvidos não captam o cicio dos pássaros, mas sim o travo da solidão, penso em te chamar, meu leal Companheiro Acácio, e contigo dividir aflições.

Sei que andamos nos últimos anos imersos em rinhas e catimbas, num torpedear de ironias e malquerenças. Quem nos vê de longe pensa-nos filhos da intriga, não almas gêmeas.

Não ouvi o que disseste.

Certo. Queres que eu continue. Assim o farei, Acácio.

 

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                                          Insisto no silêncio,

                                          mas ninguém escuta o meu pranto! 

 

Nove horas. A cidade se recolhe, e eu abraçado a um travesseiro insone.

Queria te ouvir acerca de alguns pontos, amigo Acácio: as guerras mundo afora, o fosso cada vez            mais fundo entre ricos e pobres, a erradicação do analfabetismo, as agressões contra os menos favorecidos…

O travesseiro se cobre de angústia e de lágrimas. Haveria solução para o nosso mundo?

Não ouvi o que disseste.

Certo. Queres que eu continue. Assim o farei, Acácio.

 

& & &

 

          Zombam de tudo,

          até da desgraça que enterra a cidadania.

 

Paraliso-me frente à tevê. O repórter enche a boca para relatar o número de mortos, divulgados oficialmente. A questão do clima como pauta de discursos acalorados, mas com pouca ação para redimir as nossas agressões ao ambiente. Os ecossistemas a sangrarem, e as chaminés, indiferentes, a cuspirem toneladas de desaforos.

Sinto o armagedon na nossa vizinhança. Ninguém quer captar os sinais?

Não ouvi o que disseste.

Certo. Queres que eu continue. Assim o farei, Acácio.

 

& & &

 

          Entre os vazios de cada instante,

          o vácuo da última necessidade.

 

Abro um livro abandonado sobre a escrivaninha do quarto. Never more! Um corvo só me basta, e desisto dos relatos de Poe.

Acácio, se tu estivesses aqui poderíamos iniciar um recital poético. Deixaria a largada a teu encargo. Na certa começarias com um poema de Pessoa, e eu devolveria com um soneto de Quintana. Se o vazio se tornaria menos cruel? Não saberia te dizer, mas pelo menos o atravessaríamos no barco do lirismo.

Não ouvi o que disseste.

Certo. Queres que eu continue. Assim o farei, Acácio.

 

& & &

 

          Para onde foi a rebeldia que me tangia os passos?

          Se ficou na encruzilhada da utopia, para lá voltarei.

 

Ponho os óculos sobre um exemplar de Drummond que sempre deixo à cabeceira da cama, espécie de Bíblia no meio da noite.

Com os olhos cansados e sem a clareza habitual, distingo tua imagem, Acácio, e ela me revela um acento de paz que nunca vira.

Não ouvi o que disseste. Por favor, fala mais alto.

Sim, entendi. Certo. Queres que eu não continue e te deixe dormir em paz. Assim o farei.

Boa noite, Companheiro.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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