PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXXIII)

Clauder Arcanjo*

 

 

CONFIDÊNCIAS A IVO BARROSO

 

 O poeta já não escreve.

     Sua escrita

     por mais breve

     ele digita.

 

     Hoje se arrima

     na frase elétrica

     muito mais prática:

     Adeus à rima.

     Adeus à métrica.

     Adeus gramática.

 

(Versos do poema “Nova profissão de fé”, de Ivo Barroso)

 

Há, nesta noite carioca chuvosa, a tua presença, Ivo. Uma presença viva por teus poemas, pelas tuas traduções (Shakespeare: “Faço da tradução um programa de vida, amor fiel, constante e desesperado”; Jane Austen; Hermann Hesse; Rimbaud; T. S. Eliot; Italo Calvino; Eugenio Montale; Italo Svevo…), pelos teus ensaios (O corvo e suas traduções).

Num passado nem tão distante, custei a marcar o nosso café e… o nosso encontro perdeu-se. Penso que não de todo, pois sinto até hoje a tua voz mansa, o teu cuidado com a companheira, o teu jeito afetuoso de ser e se fazer poeta: “A poesia era um acontecimento, não uma flor que se cultiva pelo seu poder decorativo, mas um sofrimento que perturba, que satisfaz e angustia. Fazer desse acontecimento uma razão de vida, ou de morte, era o trabalho do poeta, seu aprendizado, sua evolução, sua realização, que estará sempre muito aquém do quanto ele quer ou pensa poder alcançar. Compreendo isto, todas as dúvidas se desvanecem. E um grande tormento principia.”.

Aqui, neste quarto de hotel, a tua palavra se cristaliza nas páginas do teu Breviário de afetos. Nele, os encontros com: Alceu Amoroso Lima, Antônio Houaiss (“… nunca um topos clássico seria mais apropriado que a metáfora de Sísifo para apresentar aquele Houaiss-carregador-de-pedras-morro-acima, trabalhando dia e noite, atolado atrás de montanhas de fichas que a nossa equipe lhe colocava sobre a mesa e que ele ia triturando, emendando, sintetizando, enriquecendo com o escalpelo de sua crítica, o diamante de sua cultura, a sensibilidade de seu saber.”), Carlos Drummond de Andrade (“Drummond parte para o desafio, em alexandrino rimado, e quando chegamos ao ponto-final do último verso, concluímos estar diante de um novo Torso Arcaico de Apolo. Viva Drummond! Imperdível.”), Manuel Bandeira (“Parece que há no senhor, em sua vida, em seu jeitão calado, em seus livros, em tudo que recebe o seu toque, uma efusão de poesia — mas de uma poesia permanente, sem intervalo entre os poemas —, como se lhe fosse dado esse dom de continuidade poética numa ação criadora que o acompanha em todo o seu modo de existir.”), João Cabral de Melo Neto (“Se não tivesse sido poeta, talvez fosse um diplomata melhor”, confidenciou-lhe João Cabral.), Otto Maria Carpeaux, Paulo Rónai, Anísio Teixeira, Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar…

 

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A partir daí, eu nunca mais faria poemas vazios; a verdadeira poesia exigia vivência, expressão pessoal.

 

Nas tuas narrativas, crônicas memoráveis, a cultura simplifica tudo e, na Nau dos náufragos, se transmuda em verdade viva: prosa poética.

— Vem, Ivo, e oferta-nos a tradução desta noite inodora, enquanto dizem que os ipês estão a florir Brasil afora!

 

     Sofri, com a voracidade das leituras juvenis, grandes impactos e perturbações: passar de Alexandre Dumas a Dostoiévski implica saltar da simples sucessão de lances aventurosos para um mergulho nos meandros da consciência e da análise do comportamento humano.

 

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Passeio por entre as páginas do teu Breviário, Barroso, e é como se revisitasse o dia em que li e reli os teus versos em A caça virtual e outros poemas.

Passarei horas em teu convívio, Poesia ensinada aos jovens, como uma forma de expurgar o pecado de ter faltado ao teu chamado, Ivo Barroso, para um café em que segredaríamos nossas confissões e nas quais eu revelaria de corpo-alma presente o respeito que sempre devotei por ti, filho de Ervália, das Minas Gerais, intelectual brasileiro… do mundo.

 

Por que meu verso é nu de novas galas,

Alheio a variações, bruscas mudanças;

Por que com o tempo não pude enxergá-las,

Novas modas, e métodos, e nuanças?

Porque eu escrevo sempre igual, e dou-me

De expressar sempre o velho galanteio,

Que cada verso quase diz meu nome,

Revelando seu berço e donde veio?

Ó doce amor, é sobre ti que escrevo,

Tu e o amor meu repertório vasto;

A velhas frases dou novo relevo

Para gastar de novo o que foi gasto:

Pois como o sol é sempre novo e antigo

Meu amor te rediz o que eu te digo.

(William Shakespeare, “Soneto 76”, em tradução de Ivo Barroso)

 

Fonte: Breviário de afetos, de Ivo Barroso; organização Cláudio Giordano (São Paulo: SESI-SP editora, 2017).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

 

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