PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXXI)

Clauder Arcanjo*

 

Confidências a Maria Gabriela Llansol

Todos sabemos que a repetição mata.

 

Saberei banir as metáforas redutoras, as repetições mortais? O mundo me espreme contra o muro da rotina, e eu respiro o ar do dia presente-futuro ao fugir para o pântano do inesperado.

Lá, encontro-me com Camões, Pessoa, Nietzsche, Llansol…

— Afasta-te de mim, Deusa da Repetição!

 

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         As vidas continuam calendarizadas como desterros, como verdadeiros fragmentos de infernos.

 

Dói saber que a vida pulsa no pulsar do relógio no pulso dos desvalidos. Sem darem chance ao inusitado, tais corpos se endurecem, as libidos esfriam a pujança, e as almas se entregam ao inferno do nada.

— Traz-nos teu verbo-luz nesta noite sem estrelas, Maria Gabriela Llansol!

 

         Para dizer de uma maneira crua, só o escravo pergunta quem é; o homem livre segue quem o chama. Segue, mas não pertence à voz que o chama. A identidade, as mais das vezes, é estritamente inútil e acaba em papelada ou disco magnético de um computador qualquer.

 

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          A realidade para ser profunda tem que ser fragmentada.

 

Pensar, sentir, viver… Tudo num rio, numa mistura sem objetivo posto. Melhor, sem compromisso, Gabriela Llansol; ou tendo como compromisso único as quebras contínuas para, assim, “não deixar para traz nenhum detalhe, nenhuma experiência, nenhuma sensibilidade do próprio corpo.”

 

  Eu não faço separações. Para ser real e para dizer realmente como eu apreendo – apreendo estando lá. Eu acho que sinto, vejo, penso, tudo é simultâneo.

 

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           Quando me perguntam se escrevo ficção tenho vontade de rir. Ficção? Personagens que acordam, dormem, comem? Não, não tenho nada a ver com isso. Para mim não há metáforas. Uma coisa é ou não é. Não existe o como se. O que escrevo é uma narrativa, uma só narrativa que vou partindo, aos pedaços.

 

Teus personagens viajam por entre o fio da memória contínua, apesar de surgirem em fragmentos luminosos em páginas singulares. Tomada de afectos, Llansol, dedicas tuas horas em movimento à procura do sentido, às interrogações sobre a existência. Como se uma voz…

 

          A voz não está fora do texto. A voz não está dentro nem fora do texto… Ao mesmo tempo é uma voz extremamente corpórea, é muito objetal essa voz. E, quando ela fala, ela provém de um corpo real que sabe perfeitamente qual é a sua experiência, o que viveu… Digamos que ela traz as marcas de sua própria existência…

 

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          Há pessoas (não sei dizer se são muitas ou não) que, ao lerem um texto, sentem que o poderiam ter escrito. Mas sobretudo têm o sentimento que o texto está poderosamente soterrado, porque, muitas vezes, não era a primeira vez que o liam. É raro que alguém oiça alguém. É ainda mais raro que alguém compreenda o pensamento de alguém.

 

Talvez o pensamento me fuja, e o corpo fique aqui, postado junto à escrivaninha, como uma sentença solta no ar. Mas sei que, se abrir a porta, saberei me situar, pois “basta atravessar a rua para encontrar o nosso tempo, basta-me voltar atrás para me encontrar no meu”.

 

          Se a matéria do texto é a alma humana, os afectos como lhe chamei, não se pode inscrevê-la numa temporalidade linear e ficcional, porque sendo um processo redutor de apreensão do encadeado dos anéis, o texto que emerge não vai, quer num, quer noutro, além da casca de um fruto de ouro.

 

Com este anel em mim, descortino o poder que não me atrai, então cato no fundo da gaveta a senha de ouro para dar entrada e “chegar àquele ponto que era transmitir realmente o que nos tinha sido dado ver e sentir sobre o mundo, e isso sem… sem outras ideias”. Apenas armado com o meu olhar.

 

          Para mim, a palavra começa na intensidade do olhar.

 

Tua palavra, Llansol, ficará como testemunho sobre esta Terra, e será ligada e eternizada quanto mais se fizer “ligada à experiência dos outros”.

 

Fonte: Entrevistas, de Maria Gabriela Llansol (Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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