PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXVIII)

Clauder Arcanjo*

 

(Pintura “Le bonheur de vivre”, de Matisse)

 

                                                        O brasileiro adia; logo existe.

(Paulo Mendes Campos, em “Brasileiro, homem do amanhã”)

 

Antes que amanhecesse, Companheiro Acácio resolveu cancelar todos os seus compromissos.

— Mas, Acácio, é apenas uma chuva fina. O tempo pode mudar, aguarde um pouco mais! — ponderei.

— Procrastinar, para mim, não é viver. Decidir é preciso; e você bem sabe, Clauder Arcanjo, que eu sempre fui um homem de…

— … rompantes! — emendei.

Aos nossos pés, o bichano Nabuco riu de torcer o rabo felpudo.

 

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Na badalada das nove, o Sol fulgurava no horizonte. Sem titubear, fui ao encalço de Acácio.

Suspeitei de que ele se refugiara no quarto dos fundos, simulando a condição de leitor eciano. Mal abri a porta, disparei:

— Saia daí, seu…

— Calado! Nem se atreva a toldar a minha manhã com os seus impropérios de homem mal resolvido — disse-me o Companheiro, enquanto se fingia de atento admirador dos dramas de Os Maias.

— … seu…

— Aproveito a oportunidade, seu reles leitor dos tomos de autoajuda, para lhe apresentar um dos mestres da literatura portuguesa. Veja que passagem antológica, Arcanjo! Você devia largar esse seu ofício de escrevinhador de causos de província e se ater a reverenciar os verdadeiros escritores — disse-me isso, aproximando-se de mim, enquanto penteava o bigode.

Virei as costas para ele com receio de perder os bons modos. Não suportaria a pena de culpado por lhe dar mais trela para sua conversa de “sublime defensor dos clássicos”.

 

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Nabuco me seguiu. Entramos em casa e começamos a analisar a situação.

Nabuco me soprava (melhor, miava) uma sequência de ataques a Acácio, a qual se iniciaria com fundos arranhões nos bagos, seguidos de mordidas no nariz e, sem perda de tempo, de arremessos de tudo o que estivesse ao nosso alcance.

— Onde você aprendeu tanta tática de guerrilha urbana, Nabuco?

— Shizz… miau, miau… Shifzzz…

— Calma, perguntar não ofende! — pacifiquei, com receio de ser a próxima vítima daquele ódio.

 

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Acácio, suspeitando de tudo aquilo que o aguardava, não pôs a cara para fora do quartinho.

Meia-noite, Nabuco cuidou de me acordar:

— Miau, mi… Shifizuzzz…

— Hein, onde?

— Miau, miau. Fuzzzz…

— Ai, ai, ai. Combinado, já vou me levantar. Sim, eu sei. Mas…

— Sfuzzz… Schifzzz…

— Podemos ser presos. Homicídio é motivo de prisão!

— Fuzz…

— Sim, Nabuco, vou falar mais baixo. Você está certo: as paredes têm ouvidos.

Armado de pá e vassoura, e Nabuco com as garras já afiadas, caminhamos para o fundo do terreno.

Ao me aproximar, prevenido, deixei Nabuco passar para a frente:

— Shfzzuu, fuzzz…

— Não é questão de ser medroso, Nabuco, mas sim um caso de justiça: quem concebe o plano que seja o general dele. Logo, siga na frente!

Quando estávamos a poucos passos, o golpe de mestre acaciano:

— Você me conhece, Clauder Arcanjo, eu sempre fui um homem de… — interrompeu a sentença com o intuito de mostrar-nos as suas duas armas de combate: uma belíssima felina ao colo, tiro certeiro no coração de Nabuco, e um exemplar raro de Mensagem, de Pessoa, meu sonho de bibliófilo.

Rendidos, varamos a madrugada ao som de uma garoa: Nabuco entregue aos encantos de uma bela gata himalaia, e eu tendo que aguentar um recital poético de quem nunca fora íntimo da Poesia.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

 

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