PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXVI)

 

Clauder Arcanjo*

 

                                                                                    Pintura “O violonista azul, de Marc Chagall)

A casa é um reino
de duzentas portas
onde os invernos deixam
marcas de suas botas.

Minha casa: reino da memória, legado dos meus antepassados, repasto
de tantos fantasmas. Entre os momentos de insônia, ainda ouço os sussurros
da minha avó Ana a perguntar por meu pai. Na noite escura, seus olhos
embaçados pelo glaucoma recolhem as vagas lembranças do meu eu menino
e tecem, no espelho do quarto, a imagem de quem fui e de quem hoje me
perdi.

A casa é uma nau
de turbulentas velas
singrando os desejos
dos que moram nela.

Alteio a voz no meio da madrugada, como se a atestar minha vivência.
Tolo engano! Todo grito é mais prova de desejo do que de existência. Calo-me
e fisgo, no arpão do espírito, a presença da linhagem unida em torno de meus
pais, Maria e Zequinha: Dedé, Baía, eu, Tito e João Helder. À mesa, o serviço
da boa Lídia, a preparar e a nos ofertar o doce de leite como ambrosia da
província árida.

A casa é um porto                                                                                                                                              onde a barca da morte
de quando em vez ancora.

Sento-me num banco da praça, os pombos bicam o chão de cimento e
eu embarco na canoa da tarde. Pouco depois, um papel se eleva do chão e faz
seu sobrevoo por entre as árvores e sobre mim. Presumo que leva em seu bojo
a carta primeira que escrevi para o mundo: narrava alvíssaras que nunca se
efetivaram, prometia alentos que jamais me acalentaram; porém narrava,
antecipadamente, clamores que me levaram a portos nos quais fui mais âncora
do que barco.

A casa é uma pilastra
que sustenta a alma
dos que vão embora.

Sei que continuarei singrando mares mil, pelejando por veredas
estranhas, alçando-me a céus inverossímeis. Bem sei que a força de que
disponho advém da casa onde fui criado. Hoje, criatura de quimeras e nuvens,
não posso ficar parado, pois os caminhos que palmilho me transformam de
poeira em homem-pilastra.
Minha casa levita na noite longa, e eu habito o seu reino sentado na
cadeira de balanço da sala, como se ungido herdeiro de despojos enluarados.
Isto me basta e me consola.

Obs.: trechos em itálico extraídos do poema “Reino”, de Francisco
Carvalho.

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-
grandense de Letras.

 

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