PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXV)

                                                                                                                                  Clauder Arcanjo*

(Pintura “Moça e gato”, de Sasha Hartslief)
                   Loucura é criar altas medidas pra si no jogo na farsa na leviandade e depois levar a vida pra esta eternidade.
                                                                  (Waly Salomão, em “Juízo final”)

 

Sentei-me ao canto do quarto, na velha cadeira de balanço, e me pus a reler alguns contos de Guy de Maupassant. Quando me encontrava imerso na trama de “Bola de sebo”, eis que Nabuco sobe ao meu colo. Ele fez com que eu voltasse a revisitar um trecho sobre o qual eu correra os olhos.

— Shzz… miau… shizff… miau, miau.

— Sim, amigo, entendi. Não se devem ler os clássicos em leitura dinâmica.

Ele levou a patinha direita para a página seguinte, chamando a minha atenção para outra construção do mestre do conto francês.

— Shzz… miau!

— A angústia da espera fazia que se desejasse a chegada do inimigo.

E mergulhamos num silêncio de fim de tarde em que nem a expectativa da mais bela das luas cheias nos consolaria.

 

& & &

 

Antes do jantar, abri a janela e espiei o tempo. Uma brisa assanhava as poucas árvores na vizinhança, os grilos faziam a festa nos esconderijos da noite, pensamentos ligeiros iam e vinham, sem marcar presença na minha mente.

Nabuco meteu-se entre as minhas pernas, como a me exigir atenção.

— Miau… Shzz… miau!

— Não, caro Nabuco, nem só de tristeza eu vivo. O homem dito moderno foge da nostalgia como antigamente se fugia da lepra.

— Miau…

Deixei Nabuco subir para o parapeito da janela e, a exemplo de Bilac, ficamos a ouvir as estrelas. Na vitrola, as Bachianas brasileiras, de Villa-Lobos.

 

& & &

 

Sentamo-nos à mesa e comemos frugalmente. Nabuco mais me observou do que se serviu.

Em seguida, um barulho lá fora: a intriga entre dois vizinhos. Com receio de ser envolvido em mais uma querela, guardamos silêncio, apagamos a luz da sala e nos recolhemos cedo.

Sobre a cabeceira, a poesia completa de Ferreira Gullar.

— Miau, miau… shfzzii, schfzz…

— Não, Nabuco, não vou esta noite de “Poema sujo”. Guarde suas garras. Você me parece muito estressado! Gato estressado não gosta de noite fria?

— Schifzz… fuzz…

— Também não precisa brigar comigo. O riso sempre nos foi um leal companheiro, lembra?

— Miau, miau!

— Sem problema. Nossa amizade é bem maior do que as nossas rabugices. Muito bem, é hora de revisitar algumas páginas de Gullar: “E sobretudo é preciso /trabalhar com segurança /pra dentro de cada homem /trocar a arma da fome /pela arma da esperança.”; “Poeta fui de rápido destino. /Mas a poesia é rara e não comove /nem move o pau de arara.”; “E se aí também não possa /por tanta coisa que leve/ já viva em meu pensamento, /menina branca de neve, /me leve no esquecimento.”

Ao me virar, para comentar outra estrofe do poeta maranhense com Nabuco, notei que ele já dormia ao meu lado.

 

& & &

 

Alta madrugada, um sabiá chilreava.

— Miau… shifzz, miuu…au…

— Sim, Nabuco, é melhor ser desperto na madrugada por uma ave canora do que por uma rasga-mortalha.

E rimos, sob os lençóis, voltando a dormir, não sem antes recitarmos um soneto camoniano.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

 

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