PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXLVI)

Clauder Arcanjo*

 

 

(Pintura “O Cristo Crucificado”, de Diego Velázquez)

 

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.

(Carlos Drummond de Andrade, em “Infância”)

 

Meu pai é maior do que a memória deste instante em que a manhã chuvosa traz o seu jeito manso para junto de mim: aconselhando-me, orientando-me, ouvindo-me com a sua paciência infinda… Isto sem tirar a vista do nascente, em busca das torres pesadas, prenúncio de mais chuva ao cair da tarde.

Minha mãe ainda hoje gosta do inverno; saúda os relâmpagos e os trovões: “Eita, pai da coalhada!”. Enquanto ora e nos pede para ficarmos em casa.

— Sua bênção, meu pai!

 

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Apaixonou-se por São Petersburgo quando leu Dostoiévski. Ao visitá-la, decepcionou-se: sua imaginação sempre a tornava muito mais bela.

 

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Quando jovem, amava com fúria. Quando adulto, com pesar. Hoje, velho e alquebrado, percebeu-se na condição de solitário sem lar.

 

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Aos dezoito anos, entrou no rio, no rumo da baía. Lá chegando, com pouco deixa a baía e navega de mar adentro.

Quarenta anos depois, o caminho de volta: mar, baía, rio. Sentado no banco da pracinha da província, lamenta tanto tempo perdido.

 

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Lia Fernando Pessoa ao revelar-se muito crédulo. Mergulhava na ironia de Machado de Assis ao flagrar-se inocente.

Hoje, suspeitando de tudo, volta a reler as páginas de Santo Agostinho em profundas confissões.

 

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— Quem vem lá? — perguntei.

— E eu sei? — respondeu-me.

— Se não sabes quem és, irmão, tua morada é aqui. Toma assento e escolhe a tua cruz.

 

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Todo aprendiz zela pelo dom da incompletude eterna.

 

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Subiu ao ponto mais alto da cidade. Lá de cima chorou por aquela péssima obra do engenho humano.

 

A tarde cai, por demais

Erma, úmida e silente…

A chuva, em gotas glaciais,

Chora monotonamente.

(Manuel Bandeira, em “Cartas de meu avô”)

 

Fonte: trechos em itálico extraídos da obra Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade (Rio de Janeiro: Record, 2022), e do livro Antologia poética, de Manuel Bandeira (São Paulo: Global, 2020).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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