PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXLIX)

Cllauder Arcanjo*

(Pintura “Mulher com sombrinha”, de Claude Monet)

 

Rodar a chave do poema

e fecharmo-nos no seu fulgor

por sobre o vale glaciar. Reler

o frio recordado.

(Carlos de Oliveira, em “Chave”)

 

Dormi uma noite plena. Após o café, preparei-me para receber a Inspiração. Sentei-me na cadeira de balanço junto à janela e lá fiquei: olhava o céu azul, pronto para o encontro.

Apenas o silêncio sobre as folhas secas, caídas no jardim.

Hora depois escuto uma voz às minhas costas:

— O que está fazendo aí, Arcanjo?

Era o Companheiro Acácio.

Sem me perturbar, respondi:

— Aguardando a Inspiração, Acácio.

Depois de uma risada, riscada pela lâmina da ironia, devolveu-me:

— Melhor seria se você dedicasse esse valioso tempo ao culto da Transpiração. Esta é sempre companheira mais fiel daqueles que abraçam o ofício das letras.

 

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Todo marcado pelos anos, ele caminhava jovial pelas ruas de Licânia.

Quando, uma certa manhã, avisaram-lhe que ele já estava muito idoso, passou a caminhar lento e apoiado numa bengala.

 

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Dalcides Potranho admirava as estrelas e perdia-se por longas horas a vigiar seus brilhos. Depois de se apaixonar por Samira Barros, não quis mais saber de outra estrela.

 

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Eis-me aqui, caro leitor, catando inspiração nesta manhã silente em que até os pássaros calaram-se diante do vazio do dia.

Continuarei, fiel leitor: sou servo leal deste ofício.

 

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Nunca se dê por satisfeito com o elogio dos amigos; há nele, quase sempre, a não sinceridade dos que nos são mais próximos.

 

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— Em que laboras, amigo?

— Ainda não sei. Estou sob o comando do Acaso.

— Se acaso terminares, não te esqueças do caminho da lixeira.

 

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Todo faceiro, Donato Miríades entrou decidido na casa de Liliana Bispo e pediu para falar com o seu pai.

Pouco depois Donato sairia pela porta dos fundos: semblante amassado e descrente do amor e da vida.

 

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São tidos e havidos como incréus, e tolos, os que não professam a religião daqueles que se arvoram escolhidos.

 

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Condena a preguiça, guarda o labor diário, zela pela humildade como a mais fiel conselheira — falava para si todos os dias Homero Pena Forte, antes de sentar-se à sua escrivaninha.

 

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Rompeu o dia lendo um livro policial. Violento, entrou na tarde nas tramas de uma obra de horror.

Trêmulo, só se aquietou, alta noite, na releitura das páginas dos clássicos.

E dormiu uma noite plena.

 

Localizar

na frágil espessura

do tempo,

que a linguagem

pôs

em vibração,

o ponto morto

onde a velocidade

se fractura

e aí

determinar

com exactidão

o foco

do silêncio.

(Carlos de Oliveira, em “Estalactite”)

 

Fonte: trechos em itálico extraídos da obra Trabalho poético, de Carlos de Oliveira; organização de Ida Alves (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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