PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXLII)

Clauder Arcanjo*

 

Confidências a Luci Collin

 

esse eu extravagante

tingido do riso que se engole

tem mãos caprichosas que relatam

a sonolência do enredo

 

O meu eu contido, Luci, se exaspera dentro de uma estrofe não escrita e, tingido de silêncio, entrega-se a um enredo, sem ligação nenhuma com o primeiro intento.

— E, sem vontade de mais nada tecer, o meu eu-poeta outorgará assim o aborto do poema? — indago-me.

 

pouco importa

como saí na foto da capa

se o tiro saiu pela culatra

se eu rasgo dinheiro

se não rimo

 

Há uma legião de rabiscadores de pseudoversos. Eles se declaram versejadores livres, mas será que dominam os segredos da rima e da métrica?

A canção só se revela a quem não liga para a foto na primeira página, para o elogio fácil das igrejinhas literárias, nem para aqueles que pagam prefácio aos “mestres”, óbolo refugado pela Musa aflita.

Bem sabemos, Luci, que “há de ter/ um sentido/ que verte/ e descativa/ voz/ e precisão/ da palavra”.

 

são versos bárbaros

os que vos trago

que é feito de esperas

e de ladainhas

esse calendário que ora é

marasmo e ora é

redemoinho

é feito de pressentimentos

e de apenas

 

Tais pressentimentos, Collin, nos bastam. Não existe barbarismo em tão líricas ladainhas, nem sequer marasmo. Apenas Poesia, e… apenas.

 

a voz que se profere livre

saberá trazer-se da luz e do escuro

sem divisão

 

Nesta noite, Luci Collin, ao reler os seus poemas, um halo indivisível livra-me da solidão. São estrofes luminosas que me trazem a liberdade de uma poética comunhão.

 

Como a mosca minúscula

rompe a casca da fruta e ali salvaguarda

o ímpeto e o tento das metamorfoses

o desejo

 

Nasce em mim o desejo de confidenciar-lhe: entre louçanias e descalabros, habita-me a metamorfose de um tento, do qual ousarei colher a vaga rima de uma ode, escandindo o mote do vento.

 

solidão de fonte quando escurece

 

Vamos seguir, de um jeito “frágil para pegar peixe com as mãos/ e para identificar pegadas no escuro/ frágil imensamente para lembrar dos desterros/ escancaradamente frágil para crer em cios”. Como nas noites de Licânia, em que os enamorados sonhavam com o coito, enquanto cerravam os olhos, antecipando-o, ao arrepio do comedimento.

 

na arquitetura imponderável de um soneto

sem métrica e sem rima na irracional disciplina

entre o sagrado e a loucura

 

Se o meu soneto não surge, desfilarei pelas páginas de Collin, Olho reavido, “honrado na palavra feito olho/ que sagra o espaço todo no intervalo”.

 

Penso que se morre a cada letra &

penso que em cada uma delas eu vivi

 

Vive-se e morre-se: em toda sílaba soletrada, em cada verso rabiscado, em cada poema testemunhado. Poetizo, logo existo.

 

como o mar que vai e volta

e sempre esteve ali parado

sem nunca deixar de ser o mar

 

Caminho diante “de um sopro que é só/ movimento”, em “que a saudade sentencia/ no peito da gente no coração da mata/ no coração da gente”. E, na chegada, descubro, Luci Collin: tudo o que tenho de valor acompanha-me desde o início da jornada. Meu sertão de Licânia, valorosa província, em artimanhas de idas e vindas, sem nunca deixar de ser o meu lar.

 

como se eu emergisse

e fosse feito o que eu disse

 

E, Poeta, “escreve-se para aperfeiçoar/ a caligrafia apenas”? Não, entre tantas “Missivas”, nós nos encontraremos “no verbo que vence/ o desterro do silêncio”.

 

faz publicar: vivemos de milagres

 

Sim, soberana Poesia, Collin, a revelar-se no instante em que os milagres se estiolam entre as preces dos malditos, que teimam em urdir uma oração na qual as dores exaltariam a tirania do momento derradeiro.

 

ela

tão impetuosamente

verdadeira

 

Fonte: versos em itálico extraídos do livro Olho reavido, de Luci Collin (São Paulo: Iluminuras, 2022).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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