PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXLI)

Clauder Arcanjo*

Confidências a Nirton Venâncio

 

Tudo foi tão de repente

diante dos meus olhos

que não houve tempo

para retornar ao corpo do menino

que brincava na calçada.

 

Estamos aqui em terras distantes, nas quais os olhos se embaçam com o sereno da saudade, Nirton. De Crateús para Santana, meia légua de desterro; um sem-número de horizontes sem atrativos.

— E quem nos tangeu para cá, Poeta? — pergunto, sem querer saber da resposta.

 

sem grito

sem aceno

rumo ao futuro distante

no mar da capital

onde este poema

se acende

e navega contra a corrente.

 

— Havia um acento de esperança quando me meti na estrada carroçável; e tu, no trem da memória?

A infância minha ficou na primeira curva. Os teus Inhamuns viraram sombras nos sonhos telúricos.

 

Em que rio

se afogou a minha infância?

 

— Melhor não se saber. Caso não, Venâncio, podes querer mergulhar nessas águas que só correm no sertão do jamais.

 

Na tela de reboco,

esse recorte é o quadro que brilha mais

no meu cinema paradiso.

 

Hoje, Drummond nos consola. Sabendo que Itabira é tua Crateús na parede, Nirton; ao passo que minha Licânia me dói, dói…

 

de tanto o mundo girar

minha infância ficou tonta

nos ladrilhos da calçada

perdeu o rumo

e o tempo que levaria à mesma rua.

 

Na Mateus Mendes, 75, na calçada, esquina do meu mundo, perdi o prumo para melhor me achar. O tempo só me revela a dura certeza de nenhum outro mundo me bastar.

 

O mundo era irreal e vistoso.

 

Vistoso como as ribanceiras a conter as enchentes: espumas, canoas, búzios, o verde das oiticicas ancestrais… O sertão a virar mar.

 

A cidade grande fez o menino ficar espichado.

 

Espichado, tímido, sempre vestido de atrevido. Como a tentar encobrir tamanho desterro com o barro da palavra risonha: tosco verbo.

 

Foi lá em Fortaleza onde também sou.

 

Em Fortaleza, tivemos que nos batizar: em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo do mar de Iracema. Na testa, Nirton, água e sal com o bafejo de uma cidade grande. Nessas ruas, ninguém são todos; e todos, um zé-ninguém.

 

Foi lá onde as vogais do interior

encontraram as consoantes das ruas.

Foi lá que o minúsculo das cartilhas

juntou-se aos maiúsculos das pessoas.

 

Pessoas de renda em que a presunção lhes tirava o brilho, quanto mais acoitavam-se nas vendas para sugar o sangue dos incautos.

 

O poema agora salta mais um pouco para o futuro

 

E o futuro se esconde nos dormentes da tua memória, Nirton, enquanto na minha, espanto-me com o visgo da noite longa na rede fria. Haverá poeira em tanta saudade?

 

O poema afora solta-se um pouco do futuro

 

Solta-se, Nirton, porque o presente é mandrião insaciável: exige-nos corpo e alma para se sobreviver no seu asfalto quente.

 

A casa

sempre foi poema.

Cada dia,

    um verso

cada filho,

     poeta.

 

Sempre se volta para casa: o eterno retorno. Lá, pendurei nos caibros dos quartos o meu único óbolo: hei de ofertá-lo ao barqueiro que me deixar fenecer nos remansos do Acaraú.

 

O tempo sempre me encontrava.

 

E se o tempo não me encontrar, Nirton, correrei léguas e léguas por entre as vazantes, até flagrá-lo no banho da eternidade.

Fico por aqui, amigo Nirton, o teu trem já chegou à estação. Enquanto o poema… “Café com pão, bolacha não…”

 

O poema não acaba nunca.

 

Fonte: versos em itálico extraídos do livro Trem da memória, de Nirton Venâncio (Fortaleza: Editora Radiadora, 2022).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

 

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