PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXL)

                                                                                                  Clauder Arcanjo*

 

 

 

(Pintura “Carnaval”, de Di Cavalcanti)

 

Carnaval literário

 

Enquanto os foliões se preparam para desfilar na avenida, eu me recolho ao escritório e passo a selecionar os escritores-passistas para o meu carnaval literário.

Quem primeiro aceita o meu convite é uma bailarina tímida, com seu olhar inglês e sua prosa singular.

— E quem tem medo de Virginia? — indago às paredes.

O grego é a literatura impessoal; é também a literatura das obras-primas. Não há escolas; não há predecessores; não há herdeiros. Não podemos rastrear nenhum processo gradual operando-se em diversos homens de modo imperfeito até por fim se expressar adequadamente em um deles.

— Acácio, eu não o convidei para o meu baile! Não me venha com palavras de Virginia Woolf, em O leitor comum, para quebrar o meu voto de solidão.

Tomo de um bloco de papel e passo a rabiscar algumas ideias, fugazes apontamentos.

Acácio, junto à janela que dá para a rua, adverte-me:

Hoje, mais do que nunca, um escritor, um livro e uma biblioteca nos dizem: se nós não nomearmos, ninguém dará um nome. Se nós não falarmos, o silêncio imporá sua soberania soturna.

— Andou fuçando o meu exemplar de Este é meu credo, de Carlos Fuentes, Companheiro?

Acácio nada me responde. Lá fora, uma bandinha a tumultuar a placidez da minha vigília literária com “Ó abre alas”.

Dirijo-me à prateleira em que prepondera a literatura nacional. Ao folhear Otto Lara Resende, uma ponderação acaciana:

O Brasil, o Brasil poético, criativo, inaugural, o Brasil a inventar é para lá de hoje. O Brasil é sempre. E hoje passa. Sempre passou. Passará.

Não sei como ele percebeu que eu estou com O príncipe e o sabiá, escritos de Otto Lara Resende, organizados por Ana Miranda.

Afasto-me um pouco, e declaro, confidente, uma passagem de Um sopro de vida, de Clarice Lispector:

Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente.

Acácio, zombeteiro, disse-me:

— Você deve conter-se: mantendo a linha como leitor. A literatura para você, Arcanjo, é como um mito. Se você a toca, ela fenece.

Rebato com uma máxima que me ficou de Cyro dos Anjos, em O amanuense Belmiro:

Mito tocado é mito morto, e a imaginação busca outros, sentindo-se ludibriada.

— Clauder Arcanjo?!

— Ler, ler pessoanamente. Leio como quem passa. E é nos clássicos, nos calmos, nos que, se sofrem, o não dizem, que me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino, contemplador sem razão do mundo sem propósito, Príncipe do Grande Exílio, que deu, partindo-se, ao último mendigo como óbulo restante a sua desolação.

— Você sempre se valendo de Fernando Pessoa, em Livro do desassossego!

— Vou agora, Companheiro, recitar uma estrofe do meu próximo livro de poemas. Preste atenção:

Sempre desconfiei de que a minha arte

É menor, ó leitor, do que a vida provinciana,

Brejeira e liricamente soberana de Licânia.

— Esses versos são ridículos, Arcanjo.

E eu, após uma pequena pausa, irrito-me:

— Ridículo é você, Acácio: alter ego de uma figa!

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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