PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXIX)

                                                                                                                      Clauder Arcanjo*

(Pintura “El viejo guitarrista ciego”, de Pablo Picasso)

Coisas de poeta, dirão; coisas de poeta, repetirei com tristeza. Porque a minha dor e o meu despeito é não ser bastante poeta para contar com estilo de homem a verdade desse e dos outros mistérios.

(Paulo Mendes Campos, em “Azul da montanha”)

Se na vida o que vale é o esquecimento — da dor, das perdas, das desilusões —, Acácio se revelava um exímio memorialista. Nada escapava de sua lembrança: a birra longínqua, o desafeto exilado, a ofensa pessoal, mesmo que apenas soprada.

Na noite passada flagrei o Companheiro a revisitar o seu baú de reminiscências:

— Sabe, Arcanjo, nunca tive arroubos de santo.

Incomodado com aquele seu estilo de vida, interrompi-o:

— Antes de tudo, boa noite. Ainda se usa tal saudação ou já é considerada agressiva?

Ele baixou a cabeça, como um touro ferido, a tomar nota desse mais novo desagrado.

Deixei-o sozinho a ruminar e tomei a direção da copa, a fim de preparar um café.

Minutos depois, voltei ao seu escritório com uma bandeja e duas xícaras.

— Selemos um armistício, sorvendo uma rubiácea, Companheiro Acácio!

Ele se levantou com uma fúria de ultrajado, porém o aroma do café o acalmou. Bebeu a goles miúdos; notei os dentes ringindo, no entanto me fiz de desentendido.

Sobre a escrivaninha, um exemplar de Paulo Mendes Campos: O mais estranho dos países. Abri-o a esmo e me encontrei com uma passagem antológica. Li-a silenciosamente, pouco depois resolvi relê-la em voz alta:

 

                              O tempo. O tempo me sobra demais ou me falta. Uma branca eternidade de horas                    atadas. Uma braçada de horas iguais e inúteis. Ou esta pausa indefinida de quem                                espera o beijo de um anjo. Ou a campainha de um telefone.

 

Acácio se desarmou. Ele sempre capitula diante de um poema ou de uma prosa poética. Antevi a sua rendição pela comissura dos lábios, num quê de trêmula emoção, e na lágrima contida pelos grandes cílios negros.

Deixei o silêncio se interpor entre nós e abri a janela. Lá fora um bem-te-vi cantava no galho de um benjamim. Tal cena me emocionou, pois tive a vívida impressão de que já a vivemos antes.

Voltei-me em direção a Acácio e percebi a companhia de Nabuco aos seus pés. Num miado dorido, expressando-lhe uma solidariedade inesperada:

— Shifzz… miau, miauuuu!

— Não tive tal intenção, amigo bichano — defendi-me.

Nabuco arrepiou seu longo rabo, demonstrando que cerrava fileiras junto a Acácio.

Calamo-nos, esperando que a noite caísse. Em seguida, fomos para a calçada e deixamos o luar, com sua beleza tristonha, ser o pacificador daquelas nossas pífias querelas.

— Sabe, Companheiro Acácio, nunca tive arroubos de arcanjo — rendi-me.

Junto a nós, Nabuco miou satisfeito. Melhor diria: satisfeitíssimo.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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