PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXIV)

Clauder Arcanjo*

 

(Pintura “Moça lendo uma carta à janela”, de Johannes Vermeer)

            Vocês estão loucos e seguiram o caminho errado. Tomam a mentira
como verdade e a feiura como beleza.
                                                                          (Anton Tchekhov, em “A aposta”)

Semana última encontrei Companheiro Acácio cercado de livros, com um lápis à mão e um bloco de anotações ao lado. Quando me aproximei, percebi que ele conversava com os autores, lendo em voz alta o que recolhera com seus olhos curiosos e exigentes:
— O homem vulgar espera o bom e o mau do exterior, quer dizer, do
carro e do escritório, enquanto o homem que pensa espera-o de si próprio.
Quando cheguei perto, percebi que ele extraíra aquela máxima do conto “Enfermaria n° 6”, de Tchekhov.

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          Falamos sobre amenidades, em seguida tomamos um café e, de
repente, Acácio retornou ao escritório, voltando de lá com outra sentença:
— Por que Gregor estava condenado a servir numa firma em que à mínima omissão se levantava logo a máxima suspeita?
Surpreso com a constatação de que o Companheiro andara a reler A
metamorfose, de Kafka, resolvi silenciar. Não fiz uso do silêncio omisso, mas
sim do reflexivo. Certas perguntas valem mais do que muitas respostas, nós
dois bem sabíamos.

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          Pouco depois resolvemos dar uma volta em torno do próprio quarto. Acácio, com o seu jeitão sorumbático, a pentear o bigode fino, sopesando cada pensamento que lhe assomava à mente. Digo isso devido ao seu olhar para o alto: quando assim o faz, creia-me, é evidência clara de que anda preso à rede das suas conjecturas filosóficas.
Incomodado, interroguei-o:
— Algo o aflige, Acácio?
— Nas memórias de qualquer pessoa, existem coisas que ela não revela para todo mundo, só para os amigos.
— Pois então conte comigo! — encorajei-o.
— Existem memórias que ela não revela nem para os amigos, mas só para si, e mesmo assim em segredo.
Pensei: já conheço essas construções. Quando fiz menção de revelar a
fonte de tamanha “sapiência”, Companheiro arrematou:

 

— No entanto, existem também, afinal, memórias que a pessoa teme revelar até para si, e qualquer pessoa respeitável acumula um bocado de coisas do tipo.
Bati-lhe nas costas, anunciando-lhe:
— Mergulhado em Memórias do subsolo, de Fiódor Dostoiévski!

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          Calamo-nos e ficamos cada um com suas próprias dúvidas metafísicas. Quando a placidez do ambiente caminhava para nos mergulhar no pântano do enjoo mútuo, Companheiro Acácio asseverou-me, com seu tom lacrimoso:
— Somos todos muito, mas muito solitários.
— Isso bem sublinhou David Foster Wallace, em uma de suas
entrevistas reunidas na obra Um antídoto contra a solidão.

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Antes de me despedir, Acácio me confidenciou:
— Nosso encontro de hoje fez-me lembrar de uma passagem de
Cadernos de Lanzarote, de José Saramago. Parafraseando o mestre de Memorial do Convento, estamos a agir da seguinte forma: dói-nos e mordemos onde nos dói para que nos doa ainda mais, e isso talvez seja uma forma de grandeza.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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