PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCXII)

Clauder Arcanjo*

Eduardo Girão: ANTÔNIO BANDEIRA: AMAZONAS GUERREANDO

(Pintura “Amazonas Guerreando”, de Antônio Bandeira)

Placenta do entremeio dos arcanjos,

Não nasci primogênito nem benjamim.

Sobre mim o mundo não depositou

Primazias, sucessão, encargos afins.

Também não desfrutei dos mimos da caçulice.

A vida me nutria nos visgos dos mistérios,

Enquanto lá fora me cingia aos desafios.

(Clauder Arcanjo, em Um provinciano no caos)

 

Na calçada, a Poesia dormia sob um manto roto. De vez em quando ela exalava um suspiro de dor; e eu, impassível, nem dava prosa àquele alumbramento. Era noite, o frio se anunciava mais cruel do que um verso torto; e eu, indiferente, caminhava a solfejar uma canção do momento.

 

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Ao dar por mim, se é que era eu mesmo, o tempo se mostrava bem tarde. Tentei caminhar na madrugada, mas a cidade me desmotivou com uma chuvinha malfazeja.

 

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As almas do Purgatório julgam as do Inferno merecedoras da compaixão divina, enquanto as do Céu, segundo a mesma métrica, se encontram lá por falhas no julgamento do Redentor.

 

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Compadrio de biltre, no mais das vezes, é mera tentativa de cobertura para as faltas inconfessáveis.

 

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Se arrependimento matasse, Severino Contrito nunca iria a um campo-santo, pois jamais passou por perto da janela dos arrependidos.

 

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Toma o teu cálice e… quebra-o na primeira curva da tua caminhada. Nem só na condição de sofredor vive o Homem.

 

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Latiu seguidas vezes. Olhou ao redor, nenhum afago.

Voltou a ladrar, desta feita com mais afinco. Nada.

Botou a língua para fora, fingindo-se extenuado. Os passantes nem ligaram para a sua canina apresentação.

Quando ele resolveu morder o calcanhar de um caminhante, recebeu uma botinada que pôs termo a seu espetáculo de cão.

 

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Iludido com as cartas, Pari entregou-se ao destino traçado pelo baralho por Joventina da Luz. No ás de copas, ela anteviu um ofício novo e rentável. Ele, sem dar sopa para o azar, pediu demissão do emprego de funcionário público no dia seguinte; e até hoje moureja sem sorte na fila dos desempregados.

 

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Leu meia página de Pessoa, rabiscou sobre alguns versos de Quintana, decorou dois versículos bíblicos… E agora se julga o melhor candidato a uma vaga na Academia.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

 

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