PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCVI)

Clauder Arcanjo

(Pintura “Paisagem de Santo Amaro”, de Anita Malfatti)
E só então foi que ele soube de que jeito estava pegado à sua
penitência, e entendeu que essa história de se navegar com religião, e
de querer tirar sua alma da boca do demônio, era a mesma coisa que
entrar num brejão, que, para a frente, para trás e para os lados, é
sempre dificultoso e atola sempre mais.

(João Guimarães Rosa, em Sagarana)
Precisava honrar com a promessa. Penitência por demais pesada, mas
não era hora de julgar o seu tamanho, e sim o proceder.
De manhã cedinho, o pedido perante a santa da Igreja Matriz:
— Mãe do Céu, me dê forças para aguentar!
Nos pés, o cansaço; no corpo, a fadiga; na mente, por vezes, a revolta.
— Te aquieta, demônio! — rogava, com os dentes rilhados.

PÚBLICA

À noitinha, a boia minguada e a rede velha na varanda. Único refrigério,
a brisa da madrugada. A cabeça em pesadelos, porém uma certeza: aguentara
mais um dia.

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Quando desvendou os mistérios socados nos olhos do padreco novo,
que chegara a Licânia, uma decisão: nunca se confessaria com aquele
religioso. Um diabo não perdoa a um arrependido!

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Acordou abraçado à tentação.
Levantou-se, sacudiu-se todo, tirou a roupa, dando nele mesmo uma
surra com cipó fino. Em seguida, espojou-se na areia do terreiro, aos urros
nunca ouvidos, enquanto os bichos desembestavam mata adentro, a fugirem
no rumo das ventas.
— Valei-nos, meu São Francisco! — clamava Salustino, enfiado no baú
da farinha, botando tudo a perder com merda e mijo.

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Na primeira vez que se aproximou de Jussara, Sezão meteu-se em
grande desatino ao tentar puxar conversa com ela. Tal qual uma rês que se
põe a atravessar um atoleiro, quanto mais avançava, mais se perdia.
Semana depois, Sezão voltou decidido e tinhoso. Pegou as mãos dela,
apertou-as junto ao peito e, calado, fez-lhe juras de amor.
No inverno seguinte, a casa já pronta à espera da primeira cria.

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Entre nonadas e estridências, o sertanejo prefere servir ao silêncio. A
madrugada resume, quieta, as ciências de todos os bafejos do dia.

PÚBLICA
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O aviso de Guimarães Rosa, na novela “Minha gente”:

Vou dormir.
Em noite de roça, tudo é canto e recanto. E há sempre um
cachorro latindo longe, no fundo do mundo.

Fecho minha prosa, com nó e segredo. Guardo-me do sereno da
conversaria sem freio: esta não colhe espigas em roçado murcho, nem faz de
fuxico notícia de presteza afim.
Companheiro Acácio e o meu gato Nabuco a observarem calados, como
querendo “passar a sua tristeza para a gente”.
“Lá adiante, havia uma assembleia, caudejante e ruminativa, de bois e
vacas. Sobre eles, com elegância decadente e complicada pintura de
roupagens, passeavam os caracarás.”

Fonte: trechos em destaque extraídos da obra Sagarana, de João Guimarães
Rosa.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-
grandense de Letras.

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